- Matheus P. Oliveira
Análise: Pulp Fiction

Direção e Roteiro: Quentin Tarantino
Elenco: Samuel L. Jackson, John Travolta, Uma Thurman, Bruce Willis, Tim Roth, Harvey Keitel, Ving Rhames, Christopher Walken, Amanda Plummer, Eric Stoltz, Rosanna Arquette e Maria de Medeiros
Ano: 1994
Nota (⭐⭐⭐⭐⭐)
O Cinema nos anos 90 foi marcado por várias inovações, uma delas foi a linguagem, que passou a ser mais bruta e verborrágica. A maioria dos cineastas aprenderam o seu ofício apenas assistindo aos filmes. O cotidiano, assim falando, passou a fazer parte das narrativas, e as conversas triviais também, transformando mafiosos em senhoras de tricô. Influenciado por Godard, Quentin Tarantino revolucionou, de forma definitiva, a linguagem cinematográfica nos anos 90, assim que mostrou ao mundo Pulp Fiction, sua obra-prima.
O filme conecta a vida de quatro pessoas: Vincent Vega (John Travolta) e Jules Winnfield (Samuel L. Jackson), dois gângsters; Mia Wallace (Uma Thurman), a mulher do chefão da máfia; Butch Coolidge (Bruce Willis), um pugilista encrencado.
Para muitas pessoas (inclusive para mim), a surpresa maior ao assistir Pulp Fiction são os recursos do tempo não-linear - que nos faz perder a noção de ordem dos fatos - e da imprevisibilidade constante - sempre nos surpreendendo com os incidentes posteriores. A cada vez que ele é assistido, notamos detalhes que antes passaram-se desapercebidos. É como se o filme fosse escrito para ser descoberto em camadas, isto é, pouco a pouco. Assim é que classificamos um roteiro bem escrito.
De primeira vista, os personagens aparentam ser rasos por suas conversas corriqueiras (um exemplo é a cena do Big Mac), parecendo sempre jogar conversa fora para matar o tempo. Seria um problema, se isso não fosse trabalhado pelas mãos certas. Vemos pessoas conversando sobre assuntos comuns, do dia-a-dia, mas vendo a fundo, nas brechas dos diálogos, descobrimos os seus gostos, defeitos e qualidades - no caso de Jules Winnfield, ele não gosta de maionese no hambúrguer.
OS GÂNGSTERS
Mas onde já se viu dois gângsters falarem sobre Big Mac, série de Tv e massagem no pé? Isso existe. Todo tipo de gente conversa sobre coisas banais. Um gângster não fala apenas sobre coisas de gângster, ele fala sobre o que assistiu na televisão enquanto comia um rosbife. Isso não torna os personagens rasos, pois muitas de nossas conversas são assim, nem por isso somos rasos.
É no trivial que conhecemos a personalidade dos personagens, pois são de seus achismos com um total senso comum que notamos suas opiniões, conhecendo então, a natureza de cada um deles. Por exemplo: o momento em que as balas são desviadas, percebemos que Jules é mais apegado à fé do que Vincent. (Com este exemplo, abro outros parágrafos com um ponto a ser discutido, a intervenção divina, muito presente neste filme).
Chega um momento em que os avisos divinos chegam ao extremo, a ponto de disparar sozinho o gatilho da arma do Vincent, matando Marvin, um cara no banco de trás de um carro. Percebam, Jules já estava decidido a largar a vida de mafioso quando se safou dos disparos anteriormente, com essa agora, só confirmou o quão arriscada é a vida na máfia. Vincent, outrora, continua na mesma, acreditando que se trata de um mero acaso. (Mil cairão ao teu lado, dez mil à tua direita. Mas tu não serás atingido - Salmo 91:7).

É como se Deus estivesse avisando aos dois que saíssem dessa vida e que a qualquer hora, as coisas não acabariam bem. Vejam como o arco dos dois acabam: Jules começa com um terno e termina com uma roupa de verão, falando coisas dignas de uma testemunha de Jeová; Vincent começa com um terno e termina - com o terno - baleado pelo pugilista foragido da máfia. (Nesta última linha, abro um ponto para um "acerto de contas").
O ACERTO DE CONTAS
No capítulo Vincent Vega e a mulher do Marsellus Wallace, Butch (o pugilista) e Vincent (o gângster) se encontram no balcão de um bar. Vincent o encara por alguns segundos, Butch nota isso e pergunta: "perdeu alguma coisa, amigo?". Vincent responde de forma áspera: "não sou seu amigo, idiota". Butch estranha a resposta: "como é que é?". Vincent continua: "foi isso mesmo que você ouviu, idiota".

Os coices terminam e eles ficam se encarando, até que Marsellus Wallace (o chefe do Vincent) ao fundo, chama Vincent. Após isso, o close-up em Butch é crucial, pois ele descobre que Vincent trabalha para Marsellus. É como se ele dissesse: "então quer dizer que esse marrento metido a besta trabalha pro negão?".
Avançando a estória, partindo para o momento em que Butch aponta a metralhadora para o Vincent, chegamos a outro momento crucial: o acerto de contas. Flashbacks passam pela cabeça dos dois naquele momento e Vincent sabe que vai morrer. A torrada fica pronta! Tiros são disparados! Butch se livra de um encosto e ao mesmo tempo responde a ofensa do bar.
A GENIALIDADE POR TRÁS DO RELÓGIO DE OURO
Tarantino é um prodígio na escrita e faz algo sintético, totalmente plausível para contar a importância de um mero relógio de ouro.
Butch, ainda pequeno, é visitado por um veterano de guerra - amigo de seu pai. Este veterano, interpretado por Christopher Walken, conta ao pequeno Butch que o relógio de ouro passou por gerações e gerações até chegar em sua mão. Nada mais basta para que conheçamos o peso de história que acompanhou este singelo relógio.
E se Quentin gastasse mais 30 minutos de filmes colocando cenas externas em forma de flashback, mostrando o bisavô, avô e pai de Butch tentando arduamente esconder o relógio das forças inimigas? Não ficaria bom, não para o ritmo que o filme assume. Sendo contado pela boca de um veterano, soa muito melhor.
UMA CONFUSÃO POSITIVA
Como vocês sabem, Butch foi ordenado por seu chefe Marsellus Wallace a não vencer a luta. Isso não aconteceu. Ele não apenas venceu a luta, como também matou o seu oponente.
Ele precisa fugir! O mais rápido possível!
A moça do táxi (Esmarelda Vila-Lobos) o faz refletir sobre sua ação, perguntando sempre: "como é matar um homem?". Isto o deixa pensativo sobre sua ação. Agora é um jogo de gato e rato, Butch precisa se livrar de Marsellus Wallace!
Butch tem uma mulher (Fabienne) e isso remete a uma cena curiosa. Assim que Butch acorda, Fabienne assiste a um filme de guerra. A câmera a "põe" dentro da TV, ou dentro da guerra, pois agora ela está envolvida com um homem jurado de morte. A metalinguagem, porém, fica para a percepção de cada um.
Os dois estavam prestes a arrumar as malas para se mudar, mas UMA COISA havia perturbado a ordem: o relógio de ouro não estava em lugar nenhum.
Butch fica louco de raiva por descobrir que Fabienne esqueceu de pegar o relógio. Butch diz que se ela soubesse da importância do relógio não o teria esquecido.
O relógio ficou no canguru (uma mera referência ao canguru boxeador).
A jornada inusitada começa, pois tudo dá errado: Butch encontra Marsellus atravessando a rua (referência à Psicose, de 1960), bate com o carro em um cruzamento, é baleado pelo Marsellus e no fim, se depara com um dupla de pederastas numa loja de penhores.
Butch e Marsellus viram reféns dos tarados. Marsellus é estuprado pelo Zed [um policial (?)] e Butch consegue escapar. Na porta da loja, o pugilista reflete sobre a situação ("e se eu salvá-lo, nós ficaremos quites?"). A decisão é tomada e Butch retorna para salvá-lo.

No balcão ele caça acessórios para neutralizar os 'tarados'. Ele coleta um martelo (pequeno, fatal, mas não tão ágil), depois um taco de basebol (grande, não tão fatal, mas ágil), uma serra elétrica (pequena, fatal, mas não tão ágil) e por fim uma espada (grande, fatal e ágil). Esta é uma das brincadeiras mais engenhosas do filme.
Mas para encerrar esta ideia, voltemos ao ponto antes iniciado. Butch vai ao encontro de Marsellus para defendê-lo.
Encerrando isto, Marsellus e Butch ficam quites, usando diversas condições que torne a convivência de ambos agradável, no mesmo mundo.
Agora imaginem se o relógio estivesse no local onde Butch dormiu? Ele teria se safado posteriormente, ou acabaria nas mãos do Marsellus?
PODERIA ROLAR ALGUMA COISA
Vincent é solicitado para sair com Mia Wallace, a mulher do seu chefe. Ela, em muitos momentos, parece dar em cima de Vincent, assim tornando a sua personalidade duvidosa. A história contada pelo Jules, sobre o Antwan ter sido jogado pela janela por ter feito a massagem no pé dela só comprova isso.
Será que ela contou algo a mais, só pra ferrar com a vida do cara? Será que ela é confiável? Vincent comenta sobre isso com Mia, mas ela nega, alegando que os mafiosos são fofoqueiros.
Vejamos, todos os homens que saíram com ela faziam um trato para não abrir a boca. Vincent seria só mais um, pois também seria caluniado por Mia, só que por um pequeno incidente, ele não se tornou "só mais um".
Várias vezes, Mia encarava Vincent, assim me fazendo crer que ela estava apaixonada por ele, ou então apenas querendo um caso e depois descartando-o. Só que isto fica ambíguo, pois não conhecemos as intenções dela.

O PEQUENO INCIDENTE com a heroína foi uma "intervenção", para que Mia saísse culpada na história e não tivesse motivo para caluniar Vincent, logo, os dois ficam quites.
. . .
De um esqueleto hiper complexo é formado Pulp Fiction. Aparentemente simples, mas com uma estrutura cheia de intervenções fora do usual, reviravoltas e acertos de contas. É impossível falar sobre tudo nele.
Ousando dizer, Pulp Fiction fala sobre as intervenções que Deus faz para salvar os personagens. As mensagens que Ele deixa nas entrelinhas, esperando que apareça alguém esperto o suficiente para as entender. Cabe às pessoas astutas entenderem seus sinais, pois Ele não fala... Ele mostra. Talvez tenha sido isso que Tarantino quis mostrar.
Jules pulou fora, entendeu a mensagem de Deus e Vincent permaneceu descrente, mesmo depois de inúmeros incidentes: se salvou das balas, foi vítima do gatilho de sua própria pistola, quase mata a mulher de seu chefe com uma heroína e foi baleado por um pugilista - o protagonista do filme. Desta vez não tiveram balas desviadas, pois Deus avisou muitas vezes: "Sai dessa Vincent! Isso não vai acabar bem!".
O casal de ladrões do início-fim do filme são testemunhas de uma mudança de índole - a mudança de Jules. Pode ser que após o sermão, os dois também parem de ser bandidos e assim, prossigam com a disseminação do Bem (talvez).
Pulp Fiction é, sem dúvida, um dos melhores filmes da história. O tamanho de sua profundidade supera muitos outros filmes, elevando-o para o posto de clássico do Cinema. Pulp Fiction é o maior feito de Quentin Tarantino, tanto que nunca foi superado por Bastardos Inglórios, Django, ou Os Oito Odiados. Nunca mais vemos algo parecido com Pulp Fiction, e é possível que demore, pois uma obra-prima como essa, não é simples de conceber.