- Matheus P. Oliveira
Crítica | Corpo Elétrico (2017)

Direção
Marcelo Caetano
Roteiro
Marcelo Caetano, Hilton Lacerda e Gabriel Domingues
Elenco
Kelner Macêdo, Welket Bunguê, Lucas Andrade e Ana Flávia Cavalcanti
Data de Lançamento
17 de Agosto de 2017
Nota
⭐⭐⭐⭐⭐

Quase todo filme, após ser assistido, tende a se transformar (às vezes por sua excentricidade ou simplicidade). Ao sairmos da sala do cinema, tentamos, a qualquer custo, decifrá-los - e dificilmente o conseguimos. Horas depois, quando o filme surge "digerido", ele começa a sofrer algumas mutações, e seus pontos positivos e negativos começam a ser expostos. Os detalhes, que antes pareciam indecifráveis, tornam-se claros, e é justamente nesse momento onde o filme se tornará bom ou ruim por um longo tempo. Com Corpo Elétrico não foi diferente, pois ao sair do cinema, eu não pude mensurar tamanha qualidade do filme que estava diante dos meus olhos.
Em Corpo Elétrico, temos uma abertura não mais que genial: o personagem central, Elias (Macêdo), aparece numa cama, pelado e conversando com alguém íntimo (por mais que eu diga que sejam namorados, os próprios personagens não assumem tal compromisso, e Elias tem muitos outros "casos" no decorrer do filme). A princípio, não sabemos quem é Elias, nem o que ele almeja, mas há uma informação específica que delineia sua personalidade, ou seja, entrega uma ideia do tipo de pessoa que o nosso protagonista é - um rapaz quieto, "à deriva", mas necessitado de algo que lhe falta.
E o que falta para Elias permanece incógnito o tempo todo, tornando-o completamente sugestivo e amplo à interpretações. Desse modo, para sabermos o que se passa na mente de Elias, precisamos sobretudo conhecê-lo internamente e depois, com cuidado, extrair suas frustrações e analisar de modo meticuloso. Vejamos: tudo leva a crer que Elias, por sua sexualidade, ou se intrigou com os pais ou foi expulso de casa por eles, e ambas as situações o levou a arranjar um emprego numa confecção feminina para ganhar a vida - e as pessoas desse local o acolheram como um filho, fazendo com que Elias as encarasse como sua família (podemos notar que há uma forte ligação dentro daquele ambiente que ultrapassa o lado profissional). Vendo dessa forma, quando notamos a dependência de Elias pelas pessoas da confecção, a sua falta de perspectiva quanto ao futuro torna-se compreensível (inclusive há uma prova disso, que é quando o chefe de Elias lhe pergunta se existe algum interesse em abrir um próprio negócio de moda, ao que ele responde "não") e a sua personalidade, por fim, é extraída: Elias é completamente solitário.
E essa solidão só é enfatizada quando deparada com a contrastante personalidade de Fernando (Bunguê), um novo trabalhador da confecção (Fernando, que veio da Guiné-Bissau, envia parte do seu dinheiro para sustentar sua família - vemos, já por esse gesto, a diferença de costumes entre ambos, e a forma como veem uma família). Fernando é, basicamente, o gatilho para que o sentimento de solidão acendesse como uma chama dentro de Elias, e por mais que Elias viva rodeado de pessoas que o amem, seu lugar no mundo ainda encontra-se perdido por aí, talvez devido à não-aceitação da sua família no que diz respeito sua opção sexual (seus pais mal são citados no filme, mas sentimos a falta dessas figuras quando vemos Elias fazendo tudo só em sua própria casa - aliás, este é o único ponto do filme onde a não-aceitação do homossexualismo encontra-se presente, e mesmo assim, aparece sugestivamente).
Que Elias começa a gostar de Fernando não é segredo, e ao assistir Corpo Elétrico, achei que Marcelo Caetano cairia no clichê de unir os dois em mais um dos romances de Elias. Bom... eu estava enganado. Fernando é um cara sossegado, hétero (é preciso destacar) e totalmente ligado a sua família (em suma, bem seguro de si). Vejam bem, por eu dizer que Fernando é seguro de si por suas características, não quero dizer que Elias é inseguro apenas por sua sexualidade (esse fator, inclusive, contribui para a insegurança, mas apenas em algumas proporções). Resumindo, Elias precisa estar agrupado para achar o seu lugar no mundo. A solidão, para ele, é algo que deve ser frequentemente evitado. Mas mesmo assim, as tentativas de agrupamento nem sempre dão certo.
Quando o filme se desenrola, notamos cada vez mais as diferenças entre Fernando e Elias, e o distanciamento de ambos se torna iminente. Há, inclusive, um plano-sequência onde vemos todos os trabalhadores da confecção saindo à noite, em grupo, para se divertir, e nesta cena a câmera viaja através das dezenas de pessoas (ouvimos a conversa de todos e identificamos, em particular, com quem cada um se entrosa melhor, dependendo do tipo de conversa - é um tipo de cena em que mostra a complexidade de cada uma dessas pessoas e a diversidade de cada uma, fugindo de "caricaturas"). É interessante como Fernando e Elias se distanciam nesse plano, e quem se aproxima de Fernando é Carla (Cavalcanti), uma mulher que tem o mesmo tipo de conversa que o dele.
Depois de muito observar, deduzi que Corpo Elétrico não é apenas sobre Elias, mas também é o próprio Elias (o filme é ele). Acompanhamos o seu caminhar todos os dias pelas ruas de São Paulo, e notamos a mesmice - o senso de rotina que o cerca (a rotina, porém, não é pauta desse filme, mas sim o lugar e identidade que Elias deve introduzir todo dia nessa rotina). Pelos silêncios e olhares vazios de Elias, é inevitável perceber a forte ligação entre ele e o próprio filme.
É interessante que Hilton Lacerda, responsável por ter dirigido e roteirizado Tatuagem, assina também uma parte do roteiro de Corpo Elétrico - e podemos observar certas semelhanças entre ambos, mas ao mesmo tempo abordagens diferentes. Nas semelhanças, vemos o homossexualismo sendo tratado sem tabu (um ponto positivo) e nas abordagens diferentes, vemos que enquanto Tatuagem explora a importância das pessoas se unirem em grupo para superarem preconceitos e se aceitarem como são, em Corpo Elétrico, essa união não basta, e como eu disse, ela acaba enfatizando cada vez mais a solidão de Elias (até o sexo nesse filme não é visto de uma forma "passional", mas de forma escapista, como se Elias encontrasse nele a fuga para suas frustrações).
Começar o filme com Elias falando do mar e concluí-lo com ele se banhando em um, só mostra o enorme talento que Marcelo Caetano tem como diretor, além de demonstrar um ótimo exemplo de semiótica. No início, temos apenas a ideia de um Elias vazio e solitário; no fim, temos a certeza de que além de solitário, Elias se encontra à deriva de um futuro incerto.
Sobre o Autor:

Matheus P. Oliveira, 6 de Agosto de 1998, co-fundador e editor do Fala Objetiva. Estuda Jornalismo e Cinema - este último de forma autodidata. Ainda sonha em conhecer por completo o rico universo que o Cinema possui. Atualmente tem como inspiração o crítico Roger Ebert e, de forma árdua, tenta unificar ao máximo todas as outras artes em sua mais que amada arte: o Cinema. Quanto ao futuro - não muito distante -, ele pretende dirigir e escrever alguns filmes.
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