- Matheus P. Oliveira
Crítica | Mãe! (2017)

Direção
Darren Aronofsky
Roteiro
Darren Aronofsky
Elenco
Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Michelle Pfeiffer & Ed Harris
Data de Lançamento
15 de Setembro de 2017 (Exterior)
21 de Setembro de 2017 (Brasil)
Nota
⭐⭐⭐⭐⭐

Mãe! é, sem dúvida, o filme mais ambicioso de Darren Aronofsky - até mais do que o seu longa A Fonte da Vida (2006), que, segundo o próprio diretor, nele estão suas crenças. Eu diria que Mãe!, além de ambicioso, é equilibrado, justamente por tratar de assuntos demasiado densos, e mesmo assim, conseguir manter-se firme em sua proposta e não se perder em devaneios (que é o que ocorre à cineastas inexperientes ao lidar com temas colossais). Vejamos: num espaço de 33 anos, tivemos dois diretores responsáveis por conceber filmes de ambições monumentais: Stanley Kubrick, com 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968); e Terrence Malick, com A Árvore da Vida (2011). Ambos pareceram comprovar um dos principais objetivos do Cinema, que é gerar e eternizar debates sobre questões cujos significados permanecerão amplos por incontáveis décadas; e, felizmente, Mãe! pertence a este seleto grupo e, ao mesmo, difere-se dos dois por sua transgressão imagética.
Para os que forem assisti-lo, talvez lembrarão de filmes anteriores de Aronofsky, como O Lutador (2008) e Cisne Negro (2010) - até o longa Irreversível (2002), de Gaspar Noé, lembra um pouco. Pouco depois do clímax do filme, há uma câmera balançante, traduzindo a perturbação de nossa protagonista (interpretada por Jennifer Lawrence). Só que, ao falar de cenas impactantes, brutais e agressivas, Réquiem para um Sonho (2000) torna-se um filme mais à altura para comparar, justamente por seu altíssimo nível de transgressão, que ocupa quase todos os seus 102 minutos. No entanto, navegando profundamente na narrativa de Mãe!, qualquer comparação torna-se inválida, afinal, esse é de longe o filme mais peculiar de Aronofsky; aliás, só para constar: a julgar por sinopses e trailers, talvez Mãe! pareça um filme banal ou um filme-complô (aquele que todos os personagens conspiram contra a protagonista, como em Bebê de Rosemary). Só que não é. Ele não se resume a isso; falar disso é ligar apenas para a cereja do bolo.
Mãe! é muito mais amplo do que aparenta ser.
Preciso relatar isso: ao sentar em minha escrivaninha para escrever esta crítica que agora vocês leem, passaram pela minha mente tantos pensamentos e teorias acerca do filme, que eu até perdi as contas. Foram preciso horas para que os pensamentos se organizassem e se transformassem em palavras. Quando enfim me acalmei, veio a primeira comparação ao filme: o livro "Ulisses", de James Joyce.
"Ulisses" é a adaptação da "Odisseia" de Homero para os dias atuais, e uma oposição ao heroísmo homérico retratado na epopeia. James Joyce nunca concordou com o heroísmo, e o achava defasado. Por isso, pôs isto em sua obra-prima ("Ulisses"), transformando a epopeia do poeta Homero numa Odisseia Moderna, onde, ao invés de termos Odisseu, por 10 anos, tentando voltar para os braços de sua amada Penélope, temos um simples publicitário (Leopold Bloom), que precisa resolver suas burocracias diárias e voltar para casa no fim do dia, a fim de voltar para os braços de sua mulher, Molly Bloom. Vejam bem, se olharmos ingenuamente, "Ulisses" parecerá banal, mas isso não é verdade, pois Mãe! faz quase a mesma coisa, transpondo a Bíblia e Deus ao panorama do mundo moderno. Temos, no filme, as histórias bíblicas revisionadas e um Deus escritor que busca incessantemente a inspiração numa pedra preciosa, que é o coração de uma mulher e, ao mesmo tempo, de uma casa, que representa, desse modo, o Mundo.
Se resumíssemos Mãe! numa palavra, ela seria "revisão".
Peguemos a Grécia homérica e o século passado, que testemunhou uma irreversível mudança na humanidade, e façamos uma comparação aos valores destas duas épocas - como podem notar, as diferenças são imensuráveis. Assim também é Mãe!: uma revisão da história bíblica e uma abordagem de um Deus poeta, que, ao escrever o seu Poema, ganha fama e seguidores, os levando à interpretações diversas de seus textos e gerando assim, um certo fanatismo e má compreensão, motores que servirão para brigas milenares, conquistas e destruições de terras através dos continentes (todas essas histórias, que ocupariam dezenas de estantes em bibliotecas de todo o mundo, são suprimidas em alguns minutos de filme). Se fosse um livro, Mãe! se chamaria "A História da Humanidade Para Apressados". Sintético, apesar de tudo, mas completo e uma digna obra-prima.
O que é notável é a possibilidade de assistir Mãe! sob duas perspectivas: convencional e alegórica. Esta segunda, no entanto, torna o filme mais substancial. Vejamos:
Na perspectiva convencional, o ator Javier Bardem interpreta um escritor à procura de inspiração para escrever e criar um belíssimo poema (ou talvez, O Poema), e tem como "motor" um diamante e sua esposa (Lawrence); ela, é responsável por inspirá-lo e, consequentemente, responsável por uma guinada na vida de seu marido, que anteriormente fora destruída (insinuação à perspectiva alegórica), tendo apenas restado o Diamante. E é interessante que esta parte me permite citar uma fala do marido (Bardem), direcionada a um outro personagem (Harris) não menos importante: "Tudo se foi, e este diamante era a única coisa que me fez continuar, e ela", referindo-se a sua mulher, "me encorajou e pôde construir tudo de novo [...]", e isto se referindo a casa onde eles moram e, ao mesmo tempo, ao Mundo, que na História fora destruído e construído inúmeras vezes.
Isto, então, nos leva à alegoria:
Mãe!, que possui uma estrutura narrativa semelhante à de A Chegada (2016), começa com um rosto demoníaco pegando fogo (mostrado em close-up), adicionando desde já a atmosfera horripilante que o longa fortificará e definirá nos minutos seguintes; depois disso, uma casa reconstrói-se, misteriosamente, sozinha; eis que vemos a esposa (Lawrence) sentando-se na cama e perguntando por seu marido e, a partir daí, vasculhamos e contemplamos a casa e o Jardim lá fora, como se víssemos o nosso próprio mundo (graças à brilhante filmagem de Matthew Libatique, que nos torna "bisbilhoteiros", voyeurs). E o filme começa como termina, como eu já disse, igual ao A Chegada; a estrutura em palíndromo inserida em Mãe!, desse modo, é o Princípio e o Fim, que podem se inverter inúmeras vezes, pois, segundo as Escrituras, Deus é clemente e paciente, e recria suas obras quantas vezes achar necessário; sendo assim, o Princípio pode ser o Fim, e o Fim, pode ser o Princípio. Esta é a ideia suprema que o filme passa ao pôr este tipo de estrutura.
Agora, os personagens de Bardem, Lawrence, Harris e Pfeiffer:
Bardem é Deus, e recria o seu mundo a partir da destruição de um anterior (vamos dizer, existente "antes do filme"). Por isso o vemos contemplar o Diamante, demonstrando ali o processo inicial de inspiração - e isso, inclusive, também acontece no final do filme, comprovando o que eu disse antes sobre a ordem do Princípio e Fim; a performance de Bardem, é claro, traduz um personagem ambíguo.
Lawrence é a casa (Mundo) onde mora, mas ao mesmo tempo, parece ser Lúcifer (o Anjo Caído). Ela ama o seu Criador, mas não compreende muitas de suas vontades, os levando à atritos. Num certo momento, Deus (Bardem) termina de escrever o seu poema, e mostra para ela (em sua mente, reproduz-se a imagem de sua casa explodindo e um jardim florescendo, como se fosse o Paraíso, muito distante dela); depois disso, Ele (Bardem) decide publicá-lo (percebe-se claramente que o Poema é a Bíblia, mas como sabemos, ela não foi escrita por Deus); pouco a pouco, vemos Deus ganhando fama cada vez mais, graças ao seu poema, e afastando-se paralelamente de sua mulher (que está grávida, ao que parece ser, de Jesus, e isto faz com que ela seja, além do Mundo e Lúcifer, a própria Virgem Maria - fato um tanto polêmico).
(Sentimentos como Ódio e Inveja parecem se desabrochar na Mulher, originado graças aos personagens de Harris e Pfeiffer, que representam Adão e Eva semeando o Pecado Original).
Harris, como Adão, mostra seu fascínio pelo escritor, que é Deus, e segundo Adão (Harris), Ele mudou sua vida. Porém, um imprevisto acontece, e descobrimos que ele está prestes a morrer - no caso, prestes a retornar a um eterno limbo, já que fora expulso do Jardim do Éden por ter comido o Fruto junto de Eva, e dele, terem se contaminado com o Pecado Original.
Pfeiffer é crucial, pois ela é Eva, e Eva foi a primeira a sucumbir ao pecado. No filme, Eva induz a Mulher (Lawrence) a ter um filho, ao que a Mulher, de certo modo, renega justamente por ser pura; porém essa pureza não dura, e ela resolve ser seduzida pelo que Eva diz. A Mulher, que se tornará Mãe (como exclama o título do filme), transforma-se por completo; e com seu filho, o pecado se perpetuará (apesar de Jesus, segundo as Escrituras, não ter sido concebido com o Pecado Original) para sempre - a rivalidade entre os irmãos Caim e Abel que nos é rapidamente apresentada apenas esboça isso.
Desse modo, no seu cerne, o filme resume a História em poucos minutos, misturando metalinguagem e outros truques. A Antiguidade e a Modernidade parecem colidir-se e, estranhamente, causam uma harmonia no filme. Por exemplo: os soldados que entram na casa protegendo a Mãe, ou até mesmo Caim e Abel, que revelam sua rivalidade num testamento que terá de ser obedecido após a morte do pai, Adão.
Assim, volto a dizer: Mãe!, além de transgressor, é visionário e esclarecedor. Ele constrói perfeitamente a mistura entre a narrativa bíblica e um drama minimalista de um escritor que procura inspiração (como eu disse, a Antiguidade e Modernidade colidindo-se). Talvez a dúvida que atormente o homem seja esclarecida através disso: da mescla no modo de contar histórias, misturando estéticas e vendo no que vai dar - por mais agressivas que sejam. Afinal, foi na transgressão que a trajetória humana fora fundada. A história foi assim, escrita com sangue - Mãe! também é assim, cruel apesar de tudo, mas revelador. O que Darren Aronofsky concebeu será amado ou odiado, e esta é, obviamente, a reação mais esperada de um filme ambicioso e ousado como este.
Sobre o Autor:

Matheus P. Oliveira, 6 de Agosto de 1998, co-fundador e editor do Fala Objetiva. Estuda Jornalismo e Cinema - este último de forma autodidata. Ainda sonha em conhecer por completo o rico universo que o Cinema possui. Atualmente tem como inspiração o crítico Roger Ebert e, de forma árdua, tenta unificar ao máximo todas as outras artes em sua mais que amada arte: o Cinema. Quanto ao futuro - não muito distante -, ele pretende dirigir e escrever alguns filmes.
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