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  • Matheus P. Oliveira

Crítica | Cidade dos Sonhos (2001)


Direção & Roteiro

David Lynch

Elenco

Naomy Watts, Laura Herring, Justin Theroux, Angelo Bandalamenti, Robert Forster, Melissa George e Dan Hedaya

Data de Lançamento

17 de maio de 2002 (Brasil)

16 de Maio de 2001 (Exterior)

Nome Original

Mulholland Drive

Nota

⭐⭐⭐⭐⭐
 

Há meses que a produção de um texto sobre Cidade dos Sonhos havia entrado em cogitação. Brilhante e intrigante, seria impossível não o colocar em pauta. No entanto, escrever-lhe exigia uma ocasião adequada (afinal, não é fácil sintetizar, em algumas palavras, o mais genial dos quebra-cabeças cinematográficos dos anos 2000). E felizmente, na semana passada, Cidade dos Sonhos voltou a ser exibido em diversos cinemas brasileiros; eu, entusiasmado, fui assisti-lo. Desta vez, não pude deixar de recolher mais peças deste quebra-cabeça, e redescobrir sua grandiosidade através da enorme tela do cinema. 

Cidade dos Sonhos, que para mim é a obra-prima de David Lynch (apesar de muitos optarem por Veludo Azul), pareceu ter ressurgido ainda mais horripilante, sombrio e melancólico do que o habitual. Suas facetas, desta vez, parecem ter se revelado mais sóbrias e claras, mas ainda carregadas por um mistério que só pode ser encontrado na mente de Lynch. Um pouco além da superfície, sua história caminha entre as veredas de um Neo-Noir requintado (no sentido de os personagens terem suas virtudes, até um certo ponto, questionáveis e, consequentemente, corrompidas), do Surrealismo (pelo riquíssimo uso do subconsciente como a principal ferramenta para sua atmosfera) e do Romance Trágico (no que diz respeito ao relacionamento amoroso entre as personagens de Naomi Watts e Laura Harring), tornando impossível sua rotulagem por meros gêneros.

No filme temos Diane Selwyn (Watts), uma moça que queria ser atriz, mas fracassou. Declinando cada vez mais, ela fracassa em partes ainda mais sérias de sua vida (como a amorosa e moral), acabando por cavar sua própria cova.

O interessante é que aqui, Lynch conta a história clássica e convencional de uma pessoa decadente (comum em filmes dos anos 40 e 50), mas lhe introduz apenas como a superfície de algo maior; e ir além é por nossa conta. Cidade dos Sonhos se difere de outras histórias porque possui, em sua essência, as semelhanças de um sonho em nossa mente: é coerente enquanto dormimos, mas confuso quando acordamos. A explicação do sonho é caótica e, por isso, demanda ordem; Lynch fez sua obra-prima nesse estilo. Ela é um teste de lógica para os que carecem de raciocínio lógico. É desafiadora e requer persistência.

E além de complexa e percorrida fora de ordem cronológica, sua trama é recheada de personagens e objetos que geralmente representam metáforas, e simbolismos que precisam ser postos de imediato em um papel para que não fujam de nossa mente. Ou seja: não se trata de um filme hermético, mas complexo. Nas primeiras vezes quando assistido, a mente parece explodir; mas nas próximas, algo de coerente surge, e ele se torna uma obra-prima em potencial. 

Mas dos inúmeros detalhes fascinantes deste filme, o que mais fascina (e o que é menos debatido) é a trilha principal, Love, composta por Angelo Badalamenti, principal colaborador de Lynch em seus trabalhos. Love, aqui, transmite um amor trágico e dolorido nas entrelinhas, mas também reforça o apavorante e manipulador clima do filme, tornando tudo muito pesaroso (para nós e para os personagens). Aliás, Love não seria tão poderosa se fosse apenas um reforço, pois isso significaria menosprezá-la; ela, na verdade, molda o filme.  É Badalamenti quem dita seu tom, e a atmosfera Lynchiana respira em função dele. Pode-se dizer que é comparável à química entre a canção de Anthony Karas e o filme O Terceiro Homem, de Carol Reed.

É por isso que Cidade dos Sonhos não teria a força que tem sem Love. Ela, ao mesmo tempo em que revela centenas de segredos, omite outros milhares. A atmosfera do filme é a primeira que muda em função da canção; e a segunda, somos nós ao ouvi-la. Desde a sequência inicial dos dançarinos que trazem a sensação de falsa alegria e a placa da Avenida Mulholland banhada por uma luz soturna e premonitória, até os créditos iniciais que percorrem as sombrias estradas das colinas de Hollywood, Cidade dos Sonhos faz brotar sensações de mal-estar e de mal presságio. E tudo graças a Badalamenti, com sua trilha carregada de mistério, e Lynch com sua câmera sugestiva. Dois artistas de peso, mas dependentes um do outro. 

Por mais abstrata e misteriosa que seja, a canção Love parece evocar, em palavras, algo assim: Foi-se o tempo em que eu deveria ter feito e desfeito certas coisas, mas agora já é tarde. Nota-se nela a perda de valores, oportunidades, e uma vida que antes era boa. Isso traduz, basicamente, o drama interior de Diane Selwyn, que absorve a persona de Betty Elms em seu sonho. Vingança, culpa e decadência parecem reger Cidade dos Sonhos, mas Lynch prefere não se limitar a esses detalhes. Ainda que os ponham, Lynch pergunta a si mesmo: e se eu transformasse este filme em um quebra-cabeça?

Que Cidade dos Sonhos compartilha do Neo-noir já é sabido, pois a decadência humana e seus derivados são comuns neste estilo de filme. E um forte exemplo disso é Pacto de Sangue, de Billy Wilder, onde temos o vendedor de seguros, Walter Neff, que sucumbe às suas piores facetas em função de Phyllis Dietrichson, uma das mais famosas Femme Fatales do cinema, e a mulher que ele se apaixona. Com isso vemos a paixão sobrepujando a razão e, consequentemente, virando algo nocivo e corrompendo qualquer princípio - descrição ideal para Diane Selwyn. Pacto de Sangue começa com Walter arruinado, revelando seu decadente destino por meio de flashbacks e nos deixando curiosos para descobrir o que resultou aquilo (mas já ficamos tranquilo, porque Wilder conta histórias de modo convencional).

Já Lynch é o oposto. Ele quer o desconforto do espectador, quer que cocemos o queixo e pensemos sobre seu filme durante todo o mês ou ano. Faz isso atribuindo a não-linearidade e a total inserção de enigmas e simbolismos em Cidade dos Sonhos, nos deixando instigados para saber que diabos aconteceu. E de forma estritamente sugestiva - quase instintiva -, Lynch nos apresenta uma protagonista arruinada. Não apresenta nos contando, nem mostrando de forma clara, mas sugerindo-a com imagens turvas e sons esquisitos (reflexo nítido de sua carreira como pintor). O próprio início é um exemplo: dançarinos, holofotes em Diane, muitas cores e alegria - a hipérbole de um sonho bem aproveitado, que é contraste de sua trágica realidade, revelada em seu ofegante respiro sob o travesseiro rosa.

Assim, em menos de 3 minutos, David Lynch nos mostra quem é Diane Selwyn e como sua vida foi arruinada. Mas o que ele menos faz é deixar isso claro. 

Aliás, grande parte do filme é sonho de Diane, e o exagero de cores e pessoas bem-humoradas e intencionadas comprova isto (ninguém é assim, muito menos na indústria hollywoodiana). O mundo real só é apresentado em pouquíssimos 20 minutos, mas é rápido e doloroso como uma bala. Como alguém que procura a "fuga da realidade" através das drogas, Diane utiliza seus sonhos para se esconder, mas consegue controlá-los. E é isso que mais comove, pois por mais que atribuamos o sonho como sua realidade, tudo em volta torna-se, aos poucos, fantasioso demais. Consequentemente, quando ela acorda, o mundo cinza e real desaba sobre nós e sobre ela. 

Curiosamente, mas nem perto de ser surpresa, na primeira vez em que assisti a Cidade dos Sonhos, fiquei irritado por não o ter compreendido; queria debatê-lo com os outros, mas não sabia por onde começar. Ainda assim, uma pequena carga de curiosidade manteve-se guardada dentro de mim, e moveu-me para dentro deste enigma. Eu sabia que os simbolismos queriam me contar algo (a chave azul, o cinzeiro em forma de piano, o abajur vermelho, o clube silêncio, etc.), pois me deixavam intrigado e não existiam à toa. Eu o assisti com 16 anos, e nessa idade nunca tinha visto algo igual. Lynch irritava-me porque me enganava desde o primeiro minuto do filme. A cada cena algo novo surgia (se não era um objeto, era um personagem), e a minha mente tornava-se incapaz de processar tudo aquilo e organizar - essa, pelo menos, foi a primeira impressão que ficou. No entanto, tudo mudou quando o assisti pela segunda vez (isto é, um ano depois). Ainda que desordenados, notei que detalhes como Chave Azul e Cowboy faziam parte do enorme sistema de Cidade dos Sonhos - e o meu objetivo era juntá-los. Eles, como signos, ligam o caos causado pela não-linearidade do filme. Um exemplo, encontrado em uma sequência reveladora: o cinzeiro em cima da cômoda sem a chave azul diz que Camilla (Harring), namorada de Diane, ainda está viva; a chave azul sem o cinzeiro, diz que está morta. Vejam, por uma simples questão de dedução, sabemos como arrumar este confuso baralho.  

Agora, se na 1ª e 2ª vez tudo era uma bagunça, na 5ª, 6ª ou 7ª, tudo se organiza. Lynch não conta nem mostra, ele arruma, e quem diz que tudo está em ordem somos nós. Lynch nos observa e percebe se o que deduzimos está certo; se acertamos, estamos prontos para a próxima cena. É assim que o filme deve ser levado. Lynch, para mostrar como as coisas aconteceram, precisa apresentar os antecedentes a seu modo (o qual nem todos são familiarizados). E se interpretamos tudo de forma correta, os 20 minutos finais fluem com leveza. Este Epílogo, como uma revelação, nos diz o seguinte: Ok, agora veja o que realmente aconteceu.

Se Cidade dos Sonhos fosse apenas um filme cuja pretensão é ser difícil de compreender (como parece ser o caso de Donnie Darko), ele não possuiria o sucesso e prestígio que tem hoje por centenas de críticos e cinéfilos, e Lynch não teria ganhado o prêmio de Melhor Diretor em Cannes. As evidências não mentem. E percebam que há algo a mais nesse filme; algo como uma boa história e um genial modo de contá-la. Cidade dos Sonhos não é especial apenas porque é protagonizado pelas belas e talentosas Naomi Watts e Laura Harring, mas também porque é abastecido por um texto que elucida questões íntimas do ser humano, refletidas numa sociedade problemática e corrompida (e o Noir reforça tal complicação). Ele é o cutuque na indústria de Hollywood, que se vende como a "Terra das Oportunidades", mas possui como contraste pessoas cujos sonhos e carreiras foram destruídos. Mas mais do que isso, Lynch trouxe uma personagem cujo pretexto de sua decadência é profissional, depois amoroso e, por último, moral (com o pano de fundo a Indústria de Cinema, que exclui sem misericórdia).

Desse modo, Diane foi alguém que fracassou na vida real, mas que achou consolo em seu sonho, que acabaria em breve. No sonho ela é Betty, a menina perfeita que obteve sucesso e carisma. Rita (persona de Camilla) foi uma mulher cujo acidente de carro lhe causou amnésia; Camilla foi a que realmente obteve sucesso, e que acabou apaixonando-se pelo diretor Adam Kesher (Theroux). Diane, que conseguiu pontas medíocres nos filmes de Camilla, presenciava as carícias entre diretor e atriz - e o seu coração rompeu-se (a triste canção Pretty 50's, inclusive, traduz isto); daí a decadência amorosa. Cansada das humilhações, e sofrendo por não ter seu amor, Diane decide matar Camilla por encomenda. O que a leva ao suicídio por não suportar tamanha culpa. 

Cidade dos Sonhos é sobre muitas coisas, e talvez seja a melhor representação de um filme Noir, pois a dramatização central é na decadência de Diane Selwyn (acentuada pelo artifício do Surrealismo). Pode ser, também, uma crítica a injusta indústria, e sobre a vida de alguém que fracassa em razão dela, como foi dito antes. Todos parecem ser culpados por suas decadências, mas ao mesmo tempo, parecem não ser. A própria atmosfera carrega esta culpa - e o sonho de Diane é uma piada de mal gosto. A desgraça profissional, amorosa e moral a leva a sonhar desesperadamente, e a controlá-lo também, lhe dando seus únicos prazeres. Mas até os mais prazerosos sonhos possuem um desfecho, e nenhum é mais comovente do que o do Clube Silêncio (a música de Rebekah Del Rio, Llorando, que é a consciência de Diane dizendo que tudo acabou), onde notamos a epifania de nossa protagonista. Rebekah desmaia em meio ao palco, mas a música continua na cabeça de Diane. Tudo fica estranho e melodramático, e lágrimas de profunda tristeza caem de seus olhos, pois ela percebe que aquilo não é real. A consciência pesa, e fagulhas da realidade invadem seu sonho. Sofremos por isso como humanos, e vemos que ela não consegue mais controlá-lo. Rita passa a usar o mesmo cabelo de Diane, provando sua desintegração, transformando-se apenas numa projeção de sonho. Não é fácil de entender, que ao te ver outra vez, eu seguirei chorando, canta Rebekah Del Rio em um trecho revelador de Llorando, não podendo ser mais comovente. Ele significa: Camilla morreu, e pelo sonho foi a única maneira de vê-la novamente. Quando Diane, no fim, se vê atormentada por seus atos e comete o suicídio, entendemos que a trilha de Badalamenti, Love, era sobre a trágica morte de duas mulheres que se amaram.

Diane e Camilla (seus nomes reais), na penúltima cena, aparecem como fantasmas; e atrás delas, a cidade como palco da decadência humana.

Sobre o Autor:

Matheus P. Oliveira, 6 de Agosto de 1998, co-fundador e editor do Fala Objetiva. Estuda Jornalismo e Cinema - este último de forma autodidata. Ainda sonha em conhecer por completo o rico universo que o Cinema possui. Atualmente tem como inspirações os críticos Roger Ebert e Pablo Villaça e, de forma árdua, tenta unificar ao máximo todas as outras artes em sua mais que amada arte: o Cinema. Quanto ao futuro - não muito distante -, ele pretende dirigir e escrever alguns filmes. 

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