- Matheus P. Oliveira
Crítica | O Sacrifício do Cervo Sagrado (2018)

Direção & Roteiro
Yorgos Lanthimos
Elenco
Colin Farrell, Nicole Kidman, Barry Keoghan, Sunny Suljic, Raffey Cassidy, Bill Camp e Alicia Silverstone
Data de Lançamento
8 de Fevereiro de 2018 (Brasil)
3 de Novembro de 2017 (Exterior)
Nome Original
The Killing Of a Sacred Deer
Nota
⭐⭐⭐⭐⭐

O Sacrifício do Cervo Sagrado é mais plausível se for interpretado como uma alegoria. Uns podem achá-lo lunático; outros, genial. Sua mensagem é escrita - vamos dizer - por linhas tortas, mas se prestarmos atenção, ele é traduzido através de uma máxima: "Deus dá e Deus tira." Não há muitos recursos que a evidenciam, e sua natureza mítica reforça esta noção. Com o objetivo de fazer uma releitura da tragédia Ifigênia em Áulis, de Eurípedes, o diretor Yorgos Lanthimos extraiu dela temas como o sacrifício, o dilema e a moral, e as inseriu em seu filme. Nele, um personagem representa Deus, e o outro representa o Homem (mais especificamente, um Homem da Ciência).
O filme, em seu início, traz harmonia ao contraste. Uma música clássica toca ao fundo, e o primeiro plano é um coração humano em close-up. O trecho é visceral, mas possui certa classe. A câmera se afasta do coração, e então nos revela uma sala de cirurgia. Nela, a imundície combina com a algidez hospitalar; daí o contraste. Acabada a cirurgia, descobrimos que o nosso protagonista é um cirurgião e que sua profissão é tratada como mera rotina: num longo e pálido corredor, filmados em plano-sequência, temos Steven Murphy (Farrell) e seu colega anestesista, Matthew (Camp), conversando a respeito de relógios. Com isto, é dedutível que tanto a profissão quanto a personalidade de Steven possuem muito em comum: são frias e isentas de emoção.
Mas não é apenas Steven que aparenta frieza - todos os personagens são assim. A primeira metade do filme apresenta a superfície dos personagens, e nela se encontra o que eles aparentam ser. Todos eles, sob suas roupas e costumes de cidadãos, escondem seus instintos mais selvagens. O que há de visceral está dentro deles, e é revelado aos poucos, a partir da segunda metade do filme, motivado por um certo incidente.
Steven Murphy, além de cirurgião, é pai de família. Sua mulher, Anna (Kidman), é médica; seus filhos, Kim (Cassidy) e Bob (Suljic), gostam respectivamente de cantar no coral e de tocar piano. Tanto as profissões do casal quanto o gosto dos filhos revelam uma família da alta classe, mergulhada em regras de etiqueta. Conversas na mesa no estilo "como foi o seu dia, querido?" mostram a ausência de afinidade na família e uma evidente superficialidade, que é percebida pelo vazio dos assuntos discorridos. Há um certo escudo nessa família, um escudo que representa polidez.
Yorgos Lanthimos escala atores cujas expressões não demonstram versatilidade, e isso prova a frieza antes citada. Eles só possuem um olhar, quase inexpressivos, e são estes olhares que são utilizados para algo de extrema importância. E ironicamente, de tão inexpressivos que são seus olhares, eles expressam uma natureza obscura, selvagem e ambígua, que são trazidas à luz apenas por uma força exterior; assim são Colin Farrell e Nicole Kidman. O olhar evasivo de Farrell (que remete a O Lagosta) combina com o olhar penetrante de Nicole Kidman, e assim como em De Olhos Bem Fechados, sabemos que os dois possuem segredos. A câmera os capta seguindo a frieza da luz do ambiente, mas sempre mantém a distância (para observá-los). Dessa forma é na sala do jantar, no hospital, na rua, e na frente de sua residência. Notamos então o voyeurismo e, consequentemente, perguntamos: quem é o voyeur?
Martin (Keoghan), que era filho de um paciente de Steven, é crucial para trama. Os dois possuem um contato que beira à estranheza. Nele, é possível notar uma insinuação de pedofilia - mas a trama não trilha este caminho. Em vez disso, Steven ao sentir que deve algo ao menino órfão, lhe apresenta a sua família. Martin, com sua voz mansa e polida e com um olhar que oscila entre a malícia e a bondade, causa boa impressão aos Murphy (principalmente à Kim, sua admiradora). Seu olhar inexpressivo, junto do balançar de sua cabeça, entrega nuances turvas; em sua fala, é por onde o conhecemos, e elas revelam certa transgressão. Ao conversar com Kim e Bob, Martin nos revela um lado seu até então desconhecido, que era apenas insinuado: ele fuma e se diz dependente (sua fala denota frieza, ironia e estranha conformação).
A premissa do filme é a relação Martin-Steven, e o desenvolvimento da trama escorre a partir do que os dois escondem. Assim, ficamos atentos por qualquer informação de ambos os personagens, e qualquer flerte de cada um deles revela algo importante. Num determinado momento, notamos que Martin torna-se obsessivo em manter uma relação com Steven; e ela passa ficar estranha. O ápice desta estranheza é quando a mãe de Martin seduz Steven, e então as coisas mudam. Steven começa a evitar o menino órfão. E acabamos por perguntar: qual é a intenção de Martin ao fazer isso? O que ele pretende fazer? O filme, então, traz pleno sentido ao seu tom sombrio e ao seu uso estratégico de câmeras quando um incidente muda o percurso da história: Bob tem as pernas paralisadas por um motivo desconhecido. É depois disso que começam as perguntas. Por que ele não consegue andar? Será isso um acerto de contas? Tem alguma relação com Martin? Isso significa algum tipo de alegoria? O que isso significa? A revelação de Martin, após o infortúnio de Bob, torna algumas dessas questões mais claras. "Assim como você matou um membro da minha família, agora você terá que matar um membro da sua família para balancear as coisas, entende?", diz Martin para Steven, com um tom ameaçador, impassível e até profético.
O pai de Martin morreu numa cirurgia que Steven realizou, e isto é deduzido desde o início. Em quem é posta a culpa? No anestesista. Steven, além de orgulhoso, é incapaz de admitir seu erro. Ele, então, paga por isso. Não só seu filho Bob tem as pernas paralisadas, como também sua filha Kim; e a profecia de Martin passa a fazer sentido e abala o ceticismo de Steven.
A atmosfera do longa passa a possuir um discreto contexto bíblico (por isso a máxima "Deus dá e Deus tira"), mas ainda assim mantém certas características de uma tragédia grega (e os simbolismos que remetem à sacrifício e ao dilema de um homem em conflito são exemplos). Steven Murphy, como o homem da ciência, torna-se impotente por ser apenas um homem nas mãos de forças misteriosas; sua profissão torna-se inútil para salvar sua família (detalhe que é, no mínimo, irônico). Martin, em decorrência disso, ganha a imagem de um Deus do Velho Testamento, carregado pela ira. Se seu pai morreu numa cirurgia, Steven então precisará sacrificar alguém (o "cervo sagrado") para balancear tudo. Aliás, são absolutamente interessantes esses detalhes, pois já são antecipados através dos ângulos de câmera em grande angular. Ela, em diversos momentos, se mantém acima de Steven, como se fosse Deus.
Ok. E se Deus o observa, e Martin representa Deus com suas profecias, seria ele o voyeur? Exato. Martin é a personificação das câmeras que bisbilhotam a casa de Steven e o hospital no qual ele trabalha. Ele está em todo lugar, sempre observando (e a facilidade com que ele se desloca dos lugares apenas reforça isso).
Talvez a genialidade de Lanthimos esteja no ato de tornar a cirurgia a grande metáfora do filme (ela é fria e precisa). Não só Steven é frio como sua profissão, mas a atmosfera, a trilha sonora, os diálogos e as atuações do filme. Tudo é frio, latente e pouco demonstrado. Qualquer frieza é proposital, pois foi isso que o diretor quis criar. Percebam como tudo, de tão inexpressivo, chega a "expressar" terror e pessimismo. A frieza é o que define O Sacrifício do Cervo Sagrado. De tão estável, calculado e "cirúrgico" que é seu sistema, um simples traçado torto ou uma música em crescendo pode significar o prelúdio para o caos. E este filme caminha através de uma linha tênue.
O filme se conclui na nota certa, quase com simetria, combinando com a frieza de sua introdução. O coração da primeira cena faz ligação com o sacrifício na família Murphy (mas em sentidos diferentes). Sua conclusão indica que Martin é a representação de Deus. Na última cena, ele está sentado no banco de um restaurante, e nem sequer é visto pelos Murphy (exceto por Kim, que lhe dá uma olhadela). Ele é como Deus: está lá, é sentido, mas não é visto. Não há mais nenhum sacrifício, e aquela família não lhe deve mais nada. Tudo, então, acaba.
Sobre o Autor:

Matheus P. Oliveira, 6 de Agosto de 1998, co-fundador e editor do Fala Objetiva. Estuda Jornalismo e Cinema - este último de forma autodidata. Ainda sonha em conhecer por completo o rico universo que o Cinema possui. Atualmente tem como inspirações os críticos Roger Ebert e Pablo Villaça e, de forma árdua, tenta unificar ao máximo todas as outras artes em sua mais que amada arte: o Cinema. Quanto ao futuro - não muito distante -, ele pretende dirigir e escrever alguns filmes.
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