- Leandro de Sousa
Crítica | Coringa (2019)

Direção
Todd Phillips
Roteiro
Todd Phillips e Scott Silver
Elenco
Joaquin Phoenix, Zazie Beetz, Robert De Niro, Brett Cullen, Frances Conroy, Douglas Hodge, Shea Whigham, Marc Maron, Bryan Callen, Bill Camp, Josh Pais, Glenn Fleshler, Dante Pereira-Olson, Brian Tyree Henry, Jolie Chan, Mary Kate Malat, Leigh Gill, Sharon Washington, Evan Rosado, Adrienne Lovette, Mandela Bellamy
Nome Original
Joker
Data de Lançamento
03 de Outubro de 2019 (Brasil)
04 de Outubro de 2019 (Exterior)
Nota
⭐⭐⭐⭐

CRÍTICA | CORINGA (2019)
Seria quase impossível falar de Coringa sem lembrar das mais memoráveis adaptações do personagem no Cinema e em outros meios, então aqui já deixo clara a minha derrota ao senso comum, pois para analisar o longa de Todd Phillips é preciso primeiro entender o porquê de um vilão merecer uma obra tão intensa como a que é apresentada agora, e para isso é preciso obviamente olhar para trás. Ao longo de sua história o Coringa passou por diversas modificações em diversas formas de arte, dos quadrinhos às animações, do cinema ao video-game, e cada autor tinha uma visão diferente do vilão. Talvez a chave de virada – e digo isso apenas como uma suposição, já que nem de longe sou um especialista no personagem ou em HQ's – tenha sido A Piada Mortal de Alan Moore, que muito além de contar uma história sobre Batman e Coringa, deu múltiplas dimensões ao personagem e razões para que o mesmo levasse a alcunha de Palhaço Príncipe do Crime. Para Moore bastou um dia ruim para que aquele homem comum se tornasse um sociopata, capaz das ações mais perversas para provar seu ponto ou simplesmente por achar divertido testar a sanidade daqueles que se diziam guardiões da justiça. Moore desconstrói o personagem e o recria em moldes complexos, gera alguém que nada mais é do que um produto de uma sociedade doente. Nolan certamente emprega esse conceito em seu Cavaleiro das Trevas (2008) ao colocar Harvey Dent como alguém que aos olhos do mundo é um símbolo da justiça incorruptível. Para Coringa era apenas uma forma de provar que nada é incorruptível de fato e que a loucura existe dentro de cada indivíduo, mas alguns lutam contra ela enquanto outros a abraçam. Talvez seja esta a grande resposta para a mitologia do Batman. Tudo acontece devido aos dias ruins: seus pais morrem na sua frente ou você cai em um tanque de ácido enquanto é perseguido por um homem vestido de morcego ou perde sua noiva e tem metade do rosto desfigurado. No fim das contas tanto o Batman como o Coringa são loucos, a diferença é que um escolheu lutar contra isso, enquanto o outro se entregou completamente à insanidade.
Coringa conta a história de Arthur Fleck (Phoenix), um comediante frustrado que trabalha para uma empresa terceirizada de palhaços. Arthur é um homem cabisbaixo, quase sempre usa roupas em tons pastel (o que tem a clara intenção de evocar Travis Bickle, algo que também é demonstrado pelo restante da narrativa) e ironicamente sempre há, mesmo que imperceptível em certos momentos, um sorriso em seu rosto. O que o torna ainda mais medonho é a condição que possui ao não conseguir controlar sua risada, algo que me leva novamente à comparações das versões anteriores do personagem no cinema: uma característica marcante das interpretações de Jack Nicholson e Heath Ledger é a forte risada que ambos os atores eram capazes de lançar em momentos de diversão do personagem. Aqui, Phoenix sendo um dos melhores atores vivos, certamente tem essa capacidade, mas ele vai além: Arthur não parece achar diversão em sua vida. Tudo é cinzento, ele é fraco e tem a mente débil, o que faz com que outros se aproveitem dele no trabalho e em casa; cuida de sua mãe moribunda e assiste na TV ao programa de um comediante que ele admira - novamente, Phillips demonstrando seu apreço pela galeria de Scorsese ao basicamente refilmar O Rei da Comédia, colocando De Niro para fazer o papel do saudoso Jerry Lewis. Dessa forma, a risada que Phoenix apresenta em sua atuação é dolorosa, e isso é sentido a cada vez que ele a solta sem conseguir se controlar, tendo que passar cartões para pessoas desconhecidas para que elas compreendam a sua condição e não pensem que ele está de alguma forma se divertindo, pois - novamente - não há diversão.
E essa vida sem grandes emoções de Arthur se justapõe à cidade de Gotham, que é apresentada mais suja e cinzenta do que nunca. Há momentos na trilogia de Nolan nos quais a cidade parecia próspera, talvez pelo trabalho de fotografia mais colorido e avivado de Wally Poster. Em contraste, Lawrence Sher torna Gotham escura, fria e pouco chamativa, como uma cidade decadente e sem esperança. Isso é algo que reproduz perfeitamente o ponto principal que Todd Phillips quer tocar no filme. Há um momento no qual Thomas Wayne (Cullen), na TV, ofende pessoas de classes mais baixas após Arthur cometer um assassinato triplo dentro de um trem. Essa virada do primeiro para o segundo ato torna clara a intenção de Phillips de contar uma história sobre o abismo social nas metrópoles. Logo após esses dois eventos a cidade vira hostil para aqueles que detêm o poder. Arthur percebe que o que fez se torna um símbolo, fazendo com que pela primeira vez na vida ele sentisse a própria existência, o que é apontado na consulta dele na psicóloga. Aliás, momentos como este demonstram como as mentes das pessoas de Gotham estão tão sobrecarregadas que nem mesmo uma psicóloga parece ter interesse nos assuntos de seu paciente, ao passo que Arthur parece perder a paciência com todos a sua volta, incluindo sua mãe. Arthur cansa de não existir e resolve criar em sua mente um romance com sua vizinha, corroborando sua distância da sanidade com o passar do tempo. Ele sente certo prazer em criar ilusões na sua mente imaginando um mundo perfeito para si, como o momento logo no início no qual ele se imagina no programa de TV de Murray.
A frustração do personagem-título vira raiva e revolta. Ele acredita que tudo acontece por causa de injustiças que passou, mas devido ao seu pé na insanidade não compreende que seus atos impedem qualquer redenção. Pois é isso que Arthur busca ao ir atrás de Thomas Wayne que supostamente seria seu pai. Ele não o faz pois gostaria de obter qualquer vantagem financeira, apenas com o intuito de receber algo que nunca lhe fora dado nem mesmo por sua mãe, que além de mentir para ele a vida inteira o tem como um brinquedo ou como um farol para que elementos hostis fossem atraídos para ele, blindando-a de certa forma. Essa hostilidade é consumada em Arthur ao perceber que não poderia mais viver em um mundo de ilusões, por mais confortável que fosse. Depois do que fizera e do prazer que sentira, ele sabia que não iria nem quereria mais parar, pois não se importa de forma alguma com o caos que gerou. Nesse ponto o filme talvez aborde um assunto perigoso, ao parecer glamourizar a violência que Arthur comete como se fosse justiça para alguém que sofreu as mazelas da vida. Isso ocorre tanto no trem quanto no final, quando em uma clara homenagem ao Cavaleiro das Trevas (à HQ, no caso), Arthur acha que está fazendo justiça ao tirar a voz de alguém que debochou dele. Ao demonstrar que este tipo de comportamento é justificável, Phillips comete o erro de apontar culpados de forma aleatória, e mesmo aqueles que não cometeram nada contra Arthur de certa forma sofrem com sua violência, como na cena aonde dois de seus ex-colegas vão ao seu apartamento para prestar condolências – no caso quem sofre foi aquele que permaneceu vivo, pois o dano psicológico daquela imagem certamente vai demorar a sair – e o próprio Bruce Wayne (Olson) que perde seus pais devido à revolta que o vilão gerou.
Fleck é a síntese de uma piada mal contada, que diz respeito a um homem que fazia rir, mas não conseguia encontrar prazer na vida. Ele só o faz quando percebe que para existir precisaria fazer muito barulho, colocar nas mentes daquela sociedade que pessoas loucas não têm a obrigação de controlar seus impulsos, afinal, é sobre isso que a loucura se trata: vivemos nos escondendo atrás de máscaras, pois temos vergonha de demonstrar quem somos realmente, e quando não o fazemos somos colocados em camisas de força e em sanatórios. Ora, mas isso é óbvio demais de se dizer. Todavia, Coringa de forma alguma é um filme inovador em seu conceito, mas o personagem título é tão cativante que é impossível não querer assistir a um bom ator interpretando-o. Aliás, penso que talvez o maior problema do Coringa seja esse: o fato dele ser um personagem amado. Um assassino sem escrúpulos ser usado como exemplo por pessoas só prova que esse filme está mais próximo da realidade do que nunca. A cada dia que passa estamos pintando mais sorrisos nos rostos das pessoas, o problema é que tal ação está sendo feita com sangue.
Sobre o Autor:

Leandro A. de Sousa, 18 de Maio de 1998, co-fundador e editor do Fala Objetiva. Ama estudar o Cinema em todos os seus aspectos. Sabe que ainda tem muito o que aprender, tanto no que diz respeito à Sétima Arte quanto à escrita, tendo como principal inspiração nessas áreas o grande Roger Ebert. Aspirante a Crítico e Diretor/Roteirista de filmes de baixo orçamento (perceba como ele tem vontade de passar fome). Ama o que faz, mesmo que ninguém partilhe desse amor.
Twitter: _leandro_sa
Instagram: leandro.as