Matheus Oliveira
A grande questão que não se manifesta
Comecei no automático este texto. Queria escrever sobre arte, sobre algum detalhe a ver com arte, mas realmente não sei do que este texto se trata. Ou sei?
Pois bem, vejo tanta gente balbuciando sobre arte. Arte aqui, arte ali. Gente pretensiosa, tocando seus cavanhaques, gesticulando, mas nada de substancial saindo de suas bocas. E secam-se as salivas. Enquanto se fala sobre arte, fala-se apenas de algo epidermico: neste ínterim, algum ponto sacro desta discussão mantém-se intocado. Parece que ninguém o identifica. Sempre estão presentes muitos especialistas, muitos acadêmicos, mas ninguém saca a maldita questão.
E por acaso eu saco? Necas! Também sou essa gente. Toco sempre na superfície da questão, nunca aprofundo-me. Desde que me entendo por gente que me atolo na arte para procurar a grande questão. E a grande questão, no entanto, está sempre à espreita, pertinho, fitando-me. Eis o segredo (que não é segredo): a grande questão não é grande, é pequena. Aliás, é grande e pequena, como todas as coisas essenciais da existência. Fala-se por exemplo que as coisas mais profundas da vida são as mais simples. E é disso que se trata. Preocupamo-nos demais com discussões acaloradas quando na verdade deveríamos é nos calar diante do inefável que visualizamos na arte. Sim, parece que falo algo óbvio, que todo mundo já falou. E de fato, é algo óbvio. Apenas, quero elevar o debate, quero elevar a conversa a outro nível, e tento criar com essas antecipações uma espécie de prefácio. Mas já está posta a questão: nada do que falamos importa. Não queremos ouvir o que o fulano achou de tal livro ou filme. Não nos interessa a opinião alheia. Aliás, interessa, mas só noutra ocasião: será que o que o fulano achou corresponde ao que eu achei? Trata-se de mais de uma confirmação de uma correspondência do que de fato uma constatação significativa: algo ficou claro para nós, mas precisamos saber se nosso irmão de alma achou a mesma coisa. Mas também parece ser outra coisa: intriga-nos quando a opinião difere da nossa.
Mas deixe-me tentar mudar o rumo da prosa. Talvez eu tenha achado a questão-mor através da qual todas as demais questões dispersas que quero tratar convergirão.
Fala-se muito de arte, mas pouco se fala disto: a que nível de desespero ou de júbilo terá chegado o artista para produzir suas obras? É claro, existe o artista que produz arte assim como se produz pasta dental. Mas não falo desse artista (e não o desmereço). Falo é de outro tipo de artista, aquele que se martiriza para fazer de uma obra de arte a obra de arte. Falo por exemplo de um Flaubert, com a sua Madame Bovary. Falo de um Coppola, com Apocalypse Now. Mas vocês entenderam...
Prosseguindo. Falo dos artistas que sofrem às duras penas para produzir. Mas também falo de algo anterior à produção. O que teria levado o artista àquilo tudo? Não se sabe. Cada um tem seus motivos. Toda uma história de vida o levou a produzir algo que seria a tradução de sua jornada. A arte como simbolismo da vida e tal... E isto leva-me ao que eu queria falar: os artistas não são deuses, não são essas coisas intocáveis, extravagantes. Nada disso. São gente comum, mais comum do que se imagina. A arte deles tem a ver com o que pensamos diariamente. A diferença é que eles passaram tempo demais absorvendo as experiências e conseguiram achar um meio de extravasá-las na arte. Passaram toda uma vida vivendo, observando os outros ao redor. Analisando as pessoas, o humor destas, criaram um arcabouço de personas, e disso pariram o microcosmo de seus contos, romances ou filmes. Um artista é antes de tudo uma pessoa comum que antes de produzir viveu como toda a gente comum. O artista é testemunha daquilo que os outros também testemunham mas que não registram na linha da eternidade. Artistas são agentes da eternidade. São mártires. Alguns vivem uma vida agitada. Outros vivem uma vida monótona. Uns morrem velhos (Tolstói). Outros vão-se embora cedo (Rimbaud).
Quando pensamos em arte, isto é, quando pensamos seriamente no assunto, não resta muito a se falar. Não queremos bem falar. Queremos outra coisa que não é verbalizável. Vem logo de nossa incapacidade um sentimento: o de futilidade. Falar de arte é algo que parece ser fútil. Mas eu sei que não é. Peno para achar o cerne da questão - mas acharei. É algo assim: interessa-nos algo muito profundo, e esta coisa profunda é deveras fugaz. O assunto escorre pelos dedos. Parece que tratamos de algo que serve sempre para o momento seguinte. Exemplo: vivemos, mas vivemos exatamente para quê? Temos de fazê-lo; do contrário, não faria sentido vivermos vegetando enquanto esperamos o além-vida. A mesma coisa é com a arte. Discutimos tudo o que abarca a arte, mas mantemos sempre intacto o que há nela de mais essencial. Discutimos arte porque temos de fazê-lo. Discutimos arte porque o artista produz arte. Mas o que difere o artista de nós? Nós ainda não produzimos arte. Ele, sim. Somos aspirantes. Almejamos algum dia produzir. Mas se produzíssemos a arte, e tendo terminado de produzi-la, talvez não mais gostaríamos de falar dela. E parece ser isso: queremos dizer algo, e uma vez que o que tem de ser dito é dito, desejamos esquecer tudo.
Cheguei ao fim do texto. Acho que sei como vou conclui-lo. Tanto fazia ter escrito os oito paragráfos quanto ter deixado este documento em branco. Mas deixe-me continuar o que não terminei no parágrafo anterior: muitos artistas detestam falar de suas artes e até das artes alheias. Quando comentam sobre a arte alheia, falam a seu respeito de um modo um tanto superficial. E o fazem não porque sabem pouco, mas porque parecem não ter muito o que dizer. Em contrapartida, em suas produções, faltam não parar de falar. Clarice Lispector falava pouco, mas escrevia demais. A célebre escritora parece ter esgotado os mistérios do Universo em seus escritos, e no entanto, por fora, era mulher simples e quieta. A questão é que ninguém quer falar de arte num sentido que se almeja. Tudo o que foi dito e o que está para ser dito já está manifestado. Os artistas de todas as épocas (aliás, tempo inexiste para eles, pois todos são irmãos de um tempo só) falaram tudo. Aliás, nem eles precisavam ter falado. E sabem disso. Mas o esforço fútil esteve sempre acima de tudo. O artista tem vergonha da sua própria pequenez e da pequenez dos outros. Apequena-o a grandeza do mundo e a do Universo. Choca-o a beleza e a feiúra da vida. O artista sabe que só está de passagem e que para registrar a sua estada no mundo precisa produzir algo que talvez se eternize. Ele quer mostrar para as pessoas que viu algo que elas também viram. E elas notam esse esforço, e querem falar desta façanha. Mas nada disso importa. É fútil. E a melhor opção é fazer silêncio. Escrevo este texto porque sou teimoso. E amo sê-lo. Tchau!