Matheus Oliveira
A sublime arte de Éric Rohmer
Atualizado: 26 de mar. de 2022

"O autor na sua obra deve ser como Deus no universo, presente em toda parte, mas não visível em nenhuma"
- Gustave Flaubert
Os personagens de Éric Rohmer falam pelos cotovelos. Não tem um que se reserve ao silêncio. É que eles precisam falar. Precisam ser desnudados - e os diálogos servem justamente para isto.
Os gestos rohmerianos, sendo o que são - as trocas de olhares, as raivas e alegrias súbitas demonstrando uma enorme confusão interior -, já exprimem quase tudo. Tais comportamentos em partes já desnudam. Só que as palavras, ao falarmos de Rohmer - e estamos falando de um diretor que as adora -, possuem um lugar especial: elas são reveladoras. Os personagens de Rohmer falam - e falam muito. Falam tanto para si próprios quanto para os amigos - e até para desconhecidos (nós). Os diálogos permitem-nos conhecê-los um pouco mais. Ou melhor: em certo sentido "desconhecê-los".
Novamente: as palavras são reveladoras. Mas reveladoras noutro sentido. Revelam a opacidade do ser humano e ao mesmo tempo sua plena transparência; o seu comportamento óbvio e ao mesmo tempo misterioso. Revelam a condição paradoxal do ser humano.
Explico isso.
Um exemplo: fulano nos é apresentado de um determinado jeito. É dotado de certas opiniões e crenças. Mas ao se deparar com beltrano, que é possuidor de uma visão da vida que se choca com a sua, fulano então começa a exprimir opiniões que o contradizem por inteiro, formando, assim, uma criatura complexa e contraditória, tal como pessoas reais que nutrem opiniões que se entrechocam, opiniões estas que não necessariamente invalidam a sua personalidade - antes, o contrário: complexificam-na mais ainda, tornando difícil o esforço de compreendê-la em seu todo (exemplo de tal situação é a longa e cativante conversa entre Jean-Louis e Maud em Ma nuit chez Maud).
Não é assim, afinal, que ocorre com a maioria das pessoas que conhecemos, que são difíceis de definir porque são complexas, quase indefiníveis, não rotuláveis? Não é comum também repararmos um amigo ou colega - ou até nós mesmos - caindo em contradição ao soltar suas esquentadas opiniões sobre arte e política? Pois é assim mesmo. Isso acontece com frequência. Daí a função das palavras no ato de desnudar, isto é, no ato de conhecer. Daí também a função do desnudamento para, ironicamente, desconhecer.
De novo o paradoxo.
A tagarelice rohmeriana é aceitável porque verossímil, porque é a própria tagarelice metáfora para a vida. Mas não é só isso. Não se trata apenas do mero lema "a arte imita a vida", isto é, de mimetismo. Não falo desse clichê. Sigamos, em vez disso, o próprio Rohmer, que certa vez disse que "o filme não é uma linguagem, mas uma arte original; não diz coisas diferentemente, mas, sim, coisas diferentes". Em outras palavras: o cinema não tem a obrigação de ser imitação, "mimese". Tem na verdade a obrigação de ser algo original, de ser, sim, representação do mundo - porque arte é também representação -, mas, antes, precisa ser mais real do que o real, não mero simulacro seu. Precisa ser algo único, além-mundo e além-arte. Precisa ser.
E os diálogos ajudam nesta empreitada.
Mas, curiosamente, são eles mínima porcentagem do esforço. O cinema, arte não apenas sonora, mas também visual, rítmica, depende do resto. Assim é com Rohmer: seus filmes dependem de toda a mise-en-scène construída sutilmente em função dos diálogos, não o contrário. Veremos lá pela frente que a magia dos diálogos brota não deles próprios, mas, sim, do entorno.
Adepto e sucessor das teorias a respeito de uma "ontologia cinematográfica" encabeçadas por André Bazin, Rohmer as transpôs para os seus filmes. Tais teorias diziam respeito a uma estética que prezasse por tratar com "realismo" a própria realidade, isto é, que a tratasse cruamente, sem quaisquer artifícios. Inaugurador que pusera em prática tais ideias foi o Neorrealismo, italiano movimento cinematográfico do pós-guerra que influenciou inúmeras gerações posteriores mundo afora. Propunha um real a ser decifrado, ambíguo, como que misturado entre o real e o artístico. Papel fundamental possuiria o plano-sequência, técnica facilitadora que aboliria como artificiosa - porque destruidora da ilusão de continuidade - a montagem. "Imagem-fato", como viria a cunhar esta ambição estética o crítico francês André Bazin.
Da mesma nacionalidade do grande crítico era Éric Rohmer, que, antes de tornar-se cineasta, adentrou o mesmo terreno do seu mentor: a da crítica cinematográfica. Tendo primeiro trabalhado como professor, demitiu-se do ofício e em seguida mudou-se para Paris, onde começou a trabalhar como jornalista. Pela capital francesa começou a realizar exibições na Cinemateca Francesa, local onde conhecera Godard, Truffaut, dentre outros. Tal como nosso patrício Paulo Emílio, também Rohmer demorou para se interessar por cinema, sendo primeiramente um amante de Literatura (daí talvez venha a sua tendência literária como cineasta). Mas, depois de um tempo, já interessado pelos filmes, trocou por volta de 1949 o jornalismo pela crítica. Escreveu em inúmeras revistas de cinema antes de colaborar na badalada Cahiers du cinéma.
Em meados dos anos 50 escreveu juntamente de Claude Chabrol o livro Hitchcock, sobre o cineasta britânico. O livro, que focava num background católico de Alfred Hitchcock, ajudou a firmar a "auter theory" como um método crítico e contribuiu para uma revalorização do cinema americano, que foi central para aquele método.
Vieram conturbadíssimos os anos 60. Já no início da década Rohmer foi se desentendendo com os críticos da Cahiers mais "à esquerda". E enquanto estes críticos rejeitavam o cinema americano e louvavam o "cinéma verité" e os filmes de tendência marxista, Rohmer continuou admirando os filmes ianques e defendendo ideias consideradas mais conservadoras em detrimento das vigentes à época. Em consequência disso, por algum tempo resignou-se.
As ideias que Rohmer defendia eram (como já falei) as de Bazin. Eram ideias que intuíam no Cinema certo essencialismo: alegava-se existente algo de único nesta arte que inexistia nas demais; era mister, digamos assim, atingir através de uma abordagem "realista" a realidade física até que se conseguisse desta busca um elemento puramente transcendental para captar a essência cinematográfica. Remetendo àquela frase de Rohmer (voltar ao oitavo parágrafo), o Cinema, diferentemente das outras artes - até mesmo da fotografia, sua antecessora -, representava a realidade de um jeito completamente novo. Noutras palavras, o Cinema concebia um mundo mais real do que o próprio mundo, fazendo jorrar na tela cores mais pulsantes do que as da própria vida. Basta uma retrospectiva para testemunhar o feito do Cinema em detrimento das outras artes: da pintura tirava-se a perspectiva e a profundidade - porém não se tinha movimento. Da literatura, ilusão de movimento e espaço através da sutil e apropriada justaposição de palavras - porém não se tinha imagem. Da fotografia, quase tudo - menos movimento. O cinema, enfim, arte-síntese, assomava para si tudo isso, faltando pouco para tomar para si a realidade pura. Daí a visão essencialista de Bazin defendida e continuada, por sua vez, por Rohmer a respeito de uma arte que não apenas buscava o transcendente, mas que na verdade o alcançou.
Bazin concebeu tais ideias. Rohmer as aplicou em forma fílmica. Seus filmes são portanto a realização do que defendeu o grande crítico francês.
Filmografia à primeira vista monótona, é possível cometer certos equívocos com relação à obra rohmeriana: fala-se por exemplo que Rohmer discorre sobre os mesmos assuntos e sempre do mesmo jeito.
Certos os que falam da repetição dos assuntos. Errados os que alegam a monotonia com a qual são tratados os assuntos repetidos. E há precedentes dessas alegações levianas ao longo da história do Cinema e em seu momento atual.
Yasujiro Ozu e Hong Sang-soo, por exemplo, são respectivamente vítimas de tais leviandades: são acusados de serem monótonos. Ozu aborda temas familiares. Usa sempre os mesmos atores e as mesmas atrizes. Realiza, para variar, certas trocas: um ator que num filme interpreta um pai no próximo interpretará um avô. Já Sang-soo executa tramas autobiográficas (exemplo: a sua relação com Kim Min-hee) com longos diálogos, tornando tênue a cada filme que lança a linha que separa a ficção da realidade. Novamente: não há - tematicamente falando - variedade nos filmes de Ozu e de Sang-soo. Há por sua vez variedade no modo como executam os temas repetitivos. Ozu, exímio minimalista, mestre da técnica cinematográfica, por meio de composições cada vez mais complexas e cada vez mais integradas na temática vigente, conseguira a cada filme seu inovar as arestas do tema. Sang-soo, considerado um discípulo seu, através também de uma mise-en-scène minimalista, desenvolve os longos diálogos de seus personagens a partir de posicionamentos discretíssimos no quadro para criar ritmo em situações fadadas à monotonia. Entre Ozu e Sang-soo meio que se encontra Rohmer.
Em contrapartida a Godard, por exemplo, que em cada filme seu foi responsável por radicais mudanças, Rohmer manteve-se "mais no mesmo". E tal como Ozu, que certa vez achara elogioso o comentário de um jornalista a respeito da mesmice de sua filmografia, pois encontrava na repetição a excelência do ofício, Rohmer assim o foi.
O seu trabalho é complexo porque rigoroso. A composição é rigorosamente construída para abarcar o "falatório" - e este "falatório" tem coesão. E onde se encontra esta coesão? No tema que trata o filme. Mas que tema é este? Não se trata realmente de um tema, de um assunto. Não há assunto. Ou melhor, há um assunto. Mas ele é abrangente demais para ser definido: o assunto é a condição humana, a "arte de viver", como bem definiu o próprio Rohmer. A mera observância da realidade humana é o assunto, é a arte de Rohmer. Portanto, a temática é a própria temática de todos nós: o viver. Daí a aparência de monotonia, que na verdade não o é.
As situações dos personagens são situações corriqueiras. São pedaços de vidas anônimas, comuns. Os seres em tela poderiam muito bem ser pessoas conhecidas. Poderiam ser nós mesmos. E os são. Um grupo de amigos se reúne para conversar - e conversam. O que se tem a seguir é conversa e mais conversa, digressões seguidas de digressões - mas sempre agradáveis. Agradáveis pelo seguinte: nos filmes de Rohmer, para citar André Aciman, "sempre se tem a impressão de que as pessoas gostam de falar, e elas são espertas e sabem como falar, e não conversam sobre coisas chatas. Eles (os personagens) se interessam porque estão sempre escavando a superfície do outro, como se entre si perguntassem: quem é você? O que eu quero de você? Você quer algo de mim? Como podemos nos tornar próximos? Podemos nos tornar próximos?" Tais palavras pontuais definem Rohmer, mas não dizem muito sobre como esta atmosfera é criada.
Há em Rohmer como em todo grande artista método e sentimento. Ele parte de seu eterno assunto (lembrem-se: a condição humana) para então criar a sua estética. Utiliza-se de um estilo estático, simplista. A câmera, sóbria, não se move mais do que o necessário. Ela parece aguardar, aguardar um momento que valha a pena. Ou parece criar acúmulo para adiante trazer êxtase - reminiscências bressonianas. Enquanto isso, cria-se uma composição rigorosa através de uma edição atenta para dar fluidez aos acontecimentos monótonos: vejamos Le Rayon Vert, por exemplo, obra-máxima de Eric Rohmer, onde nada supostamente acontece. Delphine (interpretada por Marie Rivière) vive angustiada, deprimida. Anseia por uma novidade em sua vida. Mas nenhuma novidade aparece. Seus amigos ao redor possuem uma vida normal - de substância inócua, mas ainda assim normal - enquanto Delphine, esgotada e depressiva, procura aquilo que mude de vez a sua vida. Ao grupo anti-Rohmer, Le Rayon Vert talvez seja pura empulhação que tenta recompensar o espectador nos segundos finais com um patético pôr-do-sol.
Nada mais injusto e ridículo do que tal impressão.
As conversas nas varandas floridas, as digressões sobre astrologia e vegetarianismo são antecipações para o "grande momento". O é pelo seguinte: em todas as conversas vemos de início Delphine de escanteio para em seguida ser inserida no assunto; e o assunto com ela prossegue, ganha gás, e então a conversa é geralmente concluída com um sutil zoom em Delphine debatendo sobre algo profundamente verdadeiro, que diz respeito às nossas próprias opiniões. Com o zoom, aliás, encerra-se o contido comportamento da câmera, que, agora "espasmódica", através do autor-deus (Rohmer), pretende dizer algo: "a Delphine guardo um momento especial equivalente a uma epifania, que vale por toda uma vida vivida". As palavras bonitas constroem a delicada e humaníssima Delphine, traçam o seu destino, guardam-lhe o momento-ápice de sua vida. O "raio verde" do pôr-do-sol é por Delphine aguardado assim como se aguarda um milagre; e tamanha é a ânsia por testemunhá-lo que ela teme que o "raio verde" não apareça, temendo que com isto se desabe todo o seu próprio e já frágil edifício. O "raio verde" seria a recompensa por toda a sua espera. Aliás, não só a dela: é também a nossa recompensa. E sendo os personagens rohmerianos nós mesmos os espectadores, Delphine seria então a síntese de todos nós. A espera angustiosa de Delphine é a própria espera do espectador, espera esta que já vem intrinsicamente inscrita na progressão lógica dos acontecimentos narrativos, que imitam os da vida em si. Eis a metáfora da vida, não apenas como mero mimetismo. Eis a "arte de viver", a vida se evidenciando mais forte do que a própria vida: Cinema como além-mundo e além-arte. O fim de Le Rayon Vert parece sintetizar a própria fé no transcendente. Sintetiza a filmografia de Rohmer. Em suma, este filme é a própria realização do que realizara em teoria André Bazin.