Matheus Oliveira
Barravento, o ensaio de Glauber Rocha
Atualizado: 13 de mai. de 2021

Primeiro longa-metragem do Glauber Rocha, ou, como ele mesmo disse quando se referiu ao próprio trabalho, "um ensaio cinematográfico, uma experiência de iniciante".
E há uma grandeza, aliás, nesse iniciante, que desde cedo assimila o mundo representativo do mito e o mundo real no qual vivem emaranhadas as pessoas.
Esse mundo do mito é o mundo das crenças, das tradições milenares, criadas por indivíduos perdidos no caos cósmico, social e transcendental, precisando agarrar-se a algo palpável e confiável. O mundo real, por outro lado, é o mundo da realidade, o absurdo vivido com conformidade, que aparece para os indivíduos como a realidade única de tudo, e que é, na verdade, o mundo do absurdo, do impalpável. Enfim assimilando estes dois mundos, Glauber em seguida os aglutina: o mundo do mito seria o mundo do real, no qual vivem as pessoas; e estas mesmas pessoas, emaranhadas tão intensamente a esse mundo, tomam-lhe como real, e então, presas numa rede milenar, não mais distinguem o que seja o real e o ideal. Agarram-se a crendices e superstições para se conformarem com a impotência pessoal já intrínseca. Firmino é o balde de água fria no povo daquela ilha baiana. Suas falas são líricas mas também enérgicas - fala como um profeta. Ele revela àquelas pessoas uma realidade que ignoram, iluminando o obscurantismo do passado e do futuro (faltavam dois anos para o Golpe Militar), para lhes encher de consciência social. Sugere, inclusive, o êxodo da ilha por parte dos viventes como metáfora para a epifania revolucionária.
Revelando o vazio de alguns rituais, e como os dependentes destes rituais acabam tateando também o vazio ("Aruan é um homem comum, gosta de mulher e não domina o mar"), Glauber nos convida a refletir sobre um Brasil recente e um Brasil antigo. E este convite a uma reflexão deste porte pelo menos justifica a pouca caracterização dos personagens, com motivações não muito claras. E isto tem um porquê: eles não são exatamente personagens, porque não são indivíduos com uma vida decente; não são humanos, mas massa de manobra perante o chefe, que só lhes enxerga com a enxada na mão - são, na verdade, a realização concisa da metáfora de Glauber Rocha. Cada fala é como um sopro no ouvido com tom de verdade revelada; o vento das palmeiras e da maré da costa é a verdade revelada.
Mas não se teria algo tão impactante se todos estes elementos não trabalhassem em prol do elemento maior, só funcionando graças à crença máxima do cineasta na linguagem cinematográfica como transcendente a qualquer limitação: aquele elemento é a montagem, que é nervosa, com raízes fortíssimas em Eisenstein (possuidora, inclusive, de sua mesma fúria), e que une mundos, crenças, forças naturais, para depois separá-las e mostrá-las discrepantes, só possíveis de serem unidas numa realidade utópica, não nesta realidade desse mundo cruel, não no Brasil de então. A montagem denuncia esta impossibilidade, esta coexistência problemática entre o mito e o real.
Sobre o autor:

Matheus P. Oliveira, 6 de Agosto de 1998, co-fundador e editor do Fala Objetiva. Amante de Cinema e leitor assíduo. Sonha ingenuamente em conhecer por completo o rico universo que o Cinema possui. Tem como inspiração para seus escritos o legado de grandes pensadores desta área e de outras. De forma árdua, tenta unificar todas as outras artes em sua mais que amada arte: o Cinema. Quanto ao futuro - não muito distante -, ele pretende dirigir e escrever alguns filmes.