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  • Foto do escritorMatheus Oliveira

Diário de Quarentena #08 | Ozu e Akerman


 

Sou um procrastinador nato, até mesmo quando se trata de Cinema. Com milhares de filmes no hd externo, ainda insisto em baixar mais. Obras-primas obrigatórias residindo nele, esperando para serem vistas, e mesmo assim as evito, não por desinteresse, nem por preguiça, mas pela simples embromação. Ontem, assistindo à palestra de Paul Schrader, no TIFF, sobre o "Estilo Transcendental nos Filmes", lembrei de duas pérolas que evito assistir há anos: Era Uma Vez Em Tóquio, de Yasujiro Ozu, e Jeanne Dielman, de Chantal Akerman. Respectivamente pertencentes ao Japão e à Bélgica, estes títulos são conhecidos por serem esteticamente desafiadores por uma parcela de cinéfilos (o primeiro nem tanto, apesar de ter servido de base - em menor escala - para o segundo), acabando por serem deixados de lado. Um erro enorme, já que são obras-primas - e só descobri isto hoje. Na já comentada palestra de Schrader, ao abordar suas ideias (bem explicadas e sem floreios) e ao exemplificá-las através de filmes popularmente intrincados, deixou tudo muito claro, e então, imediatamente me veio a vontade de assistir ao filme de Ozu e de Akerman, que por tantos anos evitei. Deixando de lado a minha odiosa procrastinação, e aproveitando o tempo vago que esta quarentena do Coronavírus me proporcionou, finalmente os assisti. Abaixo, vocês poderão conferir minhas breves impressões a respeitos deles.




Era Uma Vez Em Tóquio (1953)

Ozu é profundo. Representa tudo o que há de mais sagrado no que se denomina Cinema. Este mestre japonês, que estreou no cinema mudo, migrou para o falado e se adaptou ao cinema colorido, atingiu seu auge estético e temático neste tocante drama familiar, que trata da ida de um casal de idosos à cidade de Tókio, com a intenção de visitar seus filhos já crescidos e ocupados. O que, a princípio, serve como análise social, transforma-se aos poucos no elemento que atinge emocionalmente quem assiste: o choque das gerações (tema frequente do Ozu). Estes idosos, numa breve estadia em Tókio, se vêem como fardos, ao notarem a pouca atenção que seus filhos lhes dão, ocupadíssimos em suas vidas profissionais. A surpresa do filme é a viúva Noriko, nora dos idosos, que é mais gentil e acolhedora do que os próprios filhos, e nos presenteia com as melhores cenas. Mas o interessante é que Ozu não julga seus personagens por serem assim, apenas estabelece, através deles, a incompatibilidade da relação entre as gerações e uma visão sincera de como as pessoas realmente são. A técnica rígida de Ozu, que consiste em sufocar e acumular a emoção através de enquadramentos estáticos, jamais julgando, mas sempre conservando a qualidade mais profundamente humana dos personagens, trabalha em prol desta intenção. Os diálogos, a princípio banais, são apenas um retrato naturalíssimo de pessoas simples que falam de coisas simples. E é a partir desta aparente simplicidade que reside a habilidade de Ozu em deixar transbordar a humanidade no rosto dos atores. O vazio em certos quadros do filme, que sugere um distanciamento dramático, é, aos poucos, preenchido pela emoção antes sufocada e acumulada. Neste ato poético, que pouco se consegue no Cinema, é revelada a grandeza de Yasujiro Ozu.




Jeanne Dielman (1975)

Eis um filme difícil de digerir. Três dias de uma mulher são dissecados, detalhadamente, e por mais de três horas, pela cineasta belga Chantal Akerman, e a impressão que se pode tirar desta experiência é a de um tédio muito bem aproveitado. É difícil sair indiferente de Jeanne Dielman, já que esta obra hiperrealista, que extende ao máximo o dito "Estilo Transcendental" de Paul Schrader, é um estudo apocalíptico da rotina e do tédio. Jeanne Dielman (que encabeça o título do longa) é a protagonista, e tudo o que faz são as típicas atividades domésticas, as quais incluem cuidar do filho e de sua casa, somadas às frequentes visitas remuneradas de homens à sua casa. Sua rotina se resume a isto: se levantar da cama, acordar o filho, ir na rua para fazer compras, voltar para casa, servir de babá e de cortesã e, em seguida, receber o seu filho, que regressa do colégio; por fim, ao terminar de fazer a janta, servir a si própria e ao filho para, então, concluir o dia trivial. É só isso. Ausente de uma narrativa convencional, Jeanne Dielman não é imbuído de uma narrativa que intui acontecimentos dramaticamente expressivos. Pelo contrário, são nos detalhes mais triviais (a forma rigorosa como Jeanne arruma toda a sua casa, num perfeccionismo que beira ao delírio) que reside o contexto dramático, aqui puramente minimalista: o ritmo sonoro que se cria quando ela come a sopa junto ao filho, o gracejo na forma com que ela descasca as batatas, enfim, detalhes como estes criam o esqueleto narrativo deste filme e o seu ritmo. Assim, qualquer atividade que foge da normalidade, soa com a mesma intensidade de um assassinato, como observou a própria cineasta Chantal Akerman. Numa rigidez esteticamente impassível, cem vezes mais radical que a rigidez de um Ozu ou de um Bresson, Akerman enquadra numa frontalidade violenta a atriz Delphine Seyrig, de maneira a fazê-la enfrentar uma rotina opressivamente mórbida, que acarreta no final dilacerante desta obra gigantesca, em tamanho e em qualidade. É como se Jeanne Dielman fosse para o cinema o que Ulisses foi para a Literatura.





Sobre o autor:

Matheus P. Oliveira, 6 de Agosto de 1998, co-fundador e editor do Fala Objetiva. Estuda Jornalismo e Cinema - este último de forma autodidata. Ainda sonha em conhecer por completo o rico universo que o Cinema possui. Atualmente tem como inspirações os críticos Roger Ebert e Pauline Kael e, de forma árdua, tenta unificar ao máximo todas as outras artes em sua mais que amada arte: o Cinema. Quanto ao futuro - não muito distante -, ele pretende dirigir e escrever alguns filmes.


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