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  • Foto do escritorMatheus Oliveira

Hitchcock e o cálculo das emoções

Atualizado: 17 de abr.


 

Nem sempre Alfred Hitchcock foi reconhecido como o cineasta que é hoje. Inexistia a seu respeito a unanimidade a nós hoje tão comum. Tido por uns como esteta, "manipulador", mero virtuose, e por outros genial, à altura de nomes como os de Renoir e de Ford, travou-se no passado na crítica em torno de Hitchcock verdadeira cruzada.


A jornada de sua ascendência ao posto de um dos maiores diretores da história do cinema é longa e dura. Um breve apanhado de todo o rebuliço será capaz de esclarecer a situação.


Para início de conversa, o que se pode dizer é que a tal jornada se inicia a partir de calorosos embates entre intelectuais que ora o louvavam, ora o condenavam, embates que puseram Hitchcock no olho do furacão da crítica especializada.


Eis o contexto: fim dos anos 40, pós-guerra, época na qual a sociedade europeia, mais especificamente a francesa, está em vias de mudar. L'Ecran Française, a revista francesa, está no centro das discussões político-artísticas - é aliás o cerne da cinefilia parisiense.


Almejava-se nessa época completa mudança cultural, uma varredura no que não fosse bem-vindo na cultura francesa. Recaíam as discussões distintas a um tema no qual elas ganhavam unidade coesa: a renovação da cinefilia francesa. Isto significava lançar porta afora, em nome da então chamada "Qualidade Francesa", a influência americana da jogada.


Tarefa árdua, uma vez que certos cineastas americanos eram queridos por inúmeros críticos - Ford, Welles e Wyler eram um dos nomes americanos (haviam, claro, os que torciam o nariz; mas por parte destes já não surtia tanto efeito o desprezo).


Embora fosse britânico, Hitchcock, que já estava firme em sua fase americana, era tido como um diretor mediano - habilidoso com a técnica, mas mediano.


Ao lado daquele trio destoava-se Hitchcock, que, claro, acabou virando bode expiatório. Defensores também surgiram, não só detratores. Rohmer e Chabrol escreveram, sob um panorama religioso, um livro a seu respeito. Truffaut confeccionara o famoso livro de entrevistas, o "hitchbook". Dentre outros tantos exemplos...


Acontece porém que as opiniões eram deveras mistas para que o veredito recaísse ao "bom" ou ao "ruim". Tornaram-se após um tempo, da parte dos detratores mais cruéis do diretor, hostis. Isto graças aos seus nobres defensores, compradores de briga, os "hollywoodófilos", ou "jovens turcos". Estes, sob a benção de André Bazin, defenderam com garras e dentes o diretor britânico das acusações levianas, "anticinematográficas", de intelectuais que ao menosprezarem Hitchcock, mal percebiam que na verdade diminuíam o próprio Cinema ao lhe atribuir absurdas obrigações, tais como um panfletarismo exacerbado, militante, uma priorização do tema (ou o "fundo") em detrimento da forma. Hitchcock, em suma, representava para eles tudo o que fosse contrário à "Qualidade Francesa". Achavam-o mero esteta, dono de uma obra desprovida de conteúdo.


Em pouco tempo, no entanto, a L'Ecran seria confrontada com o fato de que talvez não fosse preciso escolher entre "forma" e "fundo", uma vez que não havia escolha alguma a ser feita: o "fundo" do filme (isto é, o tema) era na verdade a sua própria forma. Disto, insultos como "virtuose" ou "manipulador" passaram a soar elogiosos. E, a despeito das opiniões recalcitrantes dos teóricos "do contra", os conceitos haviam mudado. A visão acerca de Hitchcock havia mudado.


Não é fácil analisar o trabalho de Hitchcock. Não mesmo. Ao mesmo tempo em que parece ser muito profundo, psicológico, também aparenta ser banal, simples, "visual" demais. Ele é noutras palavras genuíno diretor (pois nenhum diretor está livre de ambiguidades), e o seu cinema, o mais "cinemático" de todos.


Explico.


Hitchcock, que simplesmente agarra um motivo visual e de súbito decide filmá-lo, é por definição um diretor visual. Agarra a sétima arte em seu âmago, isto é, no que ela mais tem de expressivo. Sim, o motivo visual pode não ser tão interessante no âmbito narrativo (certos filmes seus são meio bobinhos), não fazer tanto sentido em matéria de lógica (eis o MacGuffin) ou até mesmo mostrar-se inverossímil - mas, se for dotado de riqueza visual, então nele a aposta é válida.


Outro apanhado, também breve, e desta vez o de sua vida pregressa, esclarecerá certos pontos.


Nascido em Londres, Inglaterra, Alfred Hitchcock teve uma educação jesuítica. Pôde vivenciar os medos do corpo e da alma. Mas ele não era esse cara que vivia agonias metafísicas. Não foi um Kierkegaard. Ou um Dostoiévski. Nem mesmo um Bresson. Seus medos eram mais imediatos. Um deles era este: o de autoridade. Morria de medo de ser preso. Contava isso sempre. Tal neura, inclusive, foi a que dera origem a The Wrong Man, estrelado por Henry Fonda, baseado numa história real. É a obra definitiva para se compreender o que Hitchcock queria dizer quando temia ir em cana.


Após sua experiência com os jesuítas, ingressou numa escola de engenharia, a School of Engineering and Navigation, onde aprendeu de tudo - a operar torno, a fazer parafuso, serralheria, eletricidade e mecânica. Após concluir o curso, tornou-se diretor de arte no departamento de propaganda numa firma de engenharia. Fez por lá layouts, anúncios, etc. Todas estas experiências de ordem prática, ao que parece, fizeram bem para esse Hitchcock faz-tudo, à época ainda jovem.


O ano é 1920. Hitchcock descobre a Famous Players-Sarky (futura Paramount). Ingressa nela. Estando lá, usa os seus dotes anteriormente adquiridos. Com o passar do tempo, ainda na Famous Players, foi fazendo coisas diversificadas. Entrara no departamento editorial da empresa. Conhecera por lá gente relevante do ramo. Os primeiros passos foram sendo dados. Aprendera a escrever roteiros. Fazia favores aqui e ali. Ajudava o cameraman com tomadas no set, e às vezes ele próprio as fazia.


Por volta de 22, observado por olhos atentos, teve a chance de tornar-se diretor de arte. Já nesta função mostrara-se incisivo, "dogmático", pois se dissesse que a câmera ficaria numa determinada posição, então ela teria que ficar nesta posição. Por um bom tempo encostou-se na função de diretor de arte e na de roteirista. Foi necessária a intervenção de Michael Balcon, prestigiado produtor da época, a lhe convencer a tornar-se diretor. "A pessoa responsável por Hitchcock foi Balcon", disse certa vez o próprio Hitch.


Outro produtor, David O. Selznick, no fim da década seguinte, mudaria de vez a sua carreira ao chamá-lo aos Estados Unidos para dirigir Titanic, obra fadada ao fracasso. O destino fez seu trabalho: o projeto não dera certo - economicamente inviável. Mas Hitch ainda seria diretor. O filme da vez, qual seria? Rebecca. E o resto todos sabem. Daí em diante começa de fato a saga do grande diretor.

Prático desde os tempos da firma de engenharia, este espírito reverberou em seu ofício de diretor. Na sua execução, não aceitava meio-termo. Não havia hesitação. Seu trabalho não se diferia do de um engenheiro, no sentido de que ambos precisam realizar com plena precisão seus deveres, sem a menor margem de erro, já que do contrário tudo poderia ruir.


Seria exagero traçar tal comparação se não estivéssemos falando de Hitchcock. Pois antes de filmar, Hitch, com o seu cameraman, arquitetava toda a "planta" do que filmaria. E, uma vez estando no set ou na locação, nada era filmado sem que antes não tenha sido minuciosamente planejado.


Não existem em seus filmes ângulos desnecessários. Não há neles "gordurinhas". A câmera deve apontar com exatidão o que é pedido para ser filmado. O próprio Hitchcock, em inúmeras entrevistas que dera, explicava este seu jeito metódico de trabalhar. Quando escolhia os seus projetos, era extremamente seletivo. Lia o roteiro; e se gostava, é porque era visualmente adaptável, tinha um relevante "motivo visual". Do roteiro tirava uma ideia geral, um sentimento, ou então uma situação psicológica. Premeditadamente organizava suas ideias em storyboards, através da decupagem, isto é, do esforço de dispor numa ordem específica planos-gerais, planos-detalhes, etc., a fim de atingir o efeito desejado, efeito este que para o espectador médio era consequência acidental da poesia natural que pulsa da força imagética do cinema. Não à toa os seus "algozes" chamavam-lhe virtuose. Pois de fato um artista que age com sua arte de modo tão "científico", à primeira vista não parece estar envolvido de coração com ela, já que tudo é tão calculado e frio.


Grande equívoco! Hitchcock não era mero artífice. Sim, é tênue a linha entre o artista metódico e o que é mero virtuose. Daí os equívocos. E só um grande artista como Hitchcock, pleno conhecedor de seu ofício, é capaz da proeza de confeccionar aquilo que supostamente teria de vir manifestado, via milagre, pelo demiurgo. No fim das contas, tudo está ligado ao que Hitch julga ser a essência do Cinema.


Alguns diriam que sua essência reside no movimento. Errado. Não é só isso. A resposta está incompleta. A montagem é que é a essência. Movimento é mera consequência dela. Os personagens vivem suas vidas, cercados naquele mundinho criado pelo diretor-deus. Movem-se; e no entanto, mesmo movendo-se, e em aparente autonomia, é-lhes reservado no fim da projeção um destino, escrito nas estrelas pelo diretor-deus. O último fotograma, nesse sentido, não é o fruto do acaso, do caos, mas sim fruto da tão planejada decupagem. Há reminiscências do método soviético no método hitchcockiano. Lev Kuleshov, cineasta soviético, é exaustivamente citado para exemplificar o seu próprio método.


Melhor exemplo dele posto em prática é o de seu filme-testamento, Rear Window, filme no qual Hitch expõe a ideia do cinema como ferramenta voyeurista, como janela para o mundo, para a vida alheia. James Stewart, no papel de fotógrafo, é o bisbilhoteiro, a cobaia que realiza a ideia da montagem como ferramenta associativa. A bisbilhotice vira pretexto para explorar as peripécias das quais é capaz a câmera - ou, para ser mais exato, as câmeras. Rear Window é pura metalinguagem: fala ao mesmo tempo de um fofoqueiro e do próprio Cinema. Hitchcock devia ter orgulho de Stewart, um de seus "gados" favoritos...


Aliás, "gado" - eis um ótimo tópico!


Hitchcock, como se sabe, não queria atores, não precisava deles. Quer dizer: não precisava de suas atuações. Seus atores não precisavam atuar. Apenas, faziam uma cara genérica para a lente, e olhavam para onde precisavam olhar. Isto era feito só para que contribuíssem na hora que Hitchcock fosse montar as cenas. Daí, "gado": eles faziam o que o mestre mandava.


Mas Hitch não deixou de ter problemas com alguns deles. Paul Newman (Torn Curtain) e Montgmory Clift (I Confess), ambos discípulos do Método, são dois exemplos. Nem é preciso detalhar a enxaqueca que tivera o diretor. Pedia-lhes que olhassem para uma determinada direção da forma mais genérica possível, e eles chiavam. Não achavam boa ideia. Precisavam internalizar o drama, voltar aos traumas de infância, fazer uma cara sôfrega para invocá-los. A partir destes embates, é possível notar em Hitchcock a importância da atuação convencional em detrimento da atuação stanislavskiana, para si tão inócua. Esta melava a sua ideia de montagem, grande paixão sua. "Isto é que é cinema", dizia ele, referindo-se à montagem. Aliás, criticava os diretores jovens que à toa se utilizavam de ângulos extravagantes, e os que, na preguiça de criar engenhosa decupagem, esbanjavam a câmera na mão.


Para não dizer que não tentou inovar, o diretor britânico tivera suas experiências com o tracking shot: Rope e Under the Capricorn, duas obras "teatrais", esta última louvada pela cinefilia francesa. Mas não gostou do que realizou. Sentiu que fugia da essência do seu método. Aliás, sentiu que traía uma lei fundamental do cinema. O tempo nos filmes, dizia, não deveria fluir como na vida real. O plano contínuo não pertencia ao cinema. Sua praia mesmo era outra: a do tempo manipulado - comprimido ou dilatado. Retornou então ao de sempre, ao "retalho", que é a rigor puro cinema.


Hitchcock, acerca de uma cena em Rear Window numa entrevista concedida a Peter Bogdanovich em Afinal, quem faz os filmes?, disse:


"A luta entre Stewart e Burr foi toda realizada a partir de montagens e cenas individuais. Uma cabeça, um braço, um pé - isso leva o público direto para dentro da luta. Quando se permanece à distância, tudo fica também muito mais fraco. Assim, aquela luta foi trabalhada deliberadamente, porque percebi que, se filmada à distância, resultaria em nada - seria só uma luta."


Isto é a estética de Hitchcock. Ele tinha o poder de resumir o que o público desejava assistir em matéria de cinema. Era bem visual, bem físico. Também era instintivo, pleno conhecedor do psicologismo por trás das conciliações que o público fazia a respeito da justaposição dos planos. Mostrar era o seu lema, jamais contar. Se Hemingway, que com sua escrita sucinta, de "iceberg", mostrava apenas o necessário em palavras carregadas de síntese e que, através deste artifício, deixava como sugestão uma enormidade de significados profundos - Hitchcock, por sua vez, talvez tenha sido o seu paralelo no cinema.

Hitchcock era econômico. Só se utilizava do êxtase exacerbado quando necessário. Talvez ele tenha sido mal compreendido. Não é que por ser técnico ele fosse pouco sentimental. Nada disso. Ele sabia como ser sentimental - só que o era através da manipulação da técnica. Outros artistas mais instintivos conseguiam alcançar esses momentos sublimes na base do vale-tudo. Estes dependiam da inspiração, do bom-humor. Hitchcock não se dava a esse luxo. Ele criava a própria inspiração, manejava-a ao seu bel prazer. Ele foi o artesão que alcançou o sublime através do artifício da técnica. Foi um artista no pleno sentido. Tinha tudo calculado. O resultado ele já esperava. Não gostava de assistir a seus próprios filmes no telão com o público para fisgar-lhe as reações, pois já no set, enquanto filmava, tinha em mente de antemão a reação deles. Era calculista, praticamente um diretor-deus.


Parte desse público reagiu de modo mais distinto. Os "jovens turcos", por exemplo, imbuíram de subtextos metafísicos a mise-en-scène do mestre. Seus filmes, de repente, passaram a ser sobre a culpa religiosa, sobre o complexo de Édipo, etc. Hitchcock nunca afirmou a veracidade de tais constatações. Mas também nunca as negou.


A verdade é que não é tão fácil conciliar essas interpretações. O artista faz a sua parte. Lança ao mundo a sua obra, obra esta que, uma vez lançada ao mundo, não mais é sua. O mundo analisa-a, matuta as significações, tira enfim conclusões, fazendo também a sua parte. Hitchcock, talvez em seu íntimo, calculasse estas especulações místicas. Talvez estas estivessem já em si tão entranhadas que já não mais passavam pelo intelecto. Brotavam, fervilhando, em forma expressiva, artística. Se vinha-lhe uma ideia, dela fazia "parir" um filme. Se tinha algo a dizer, dizia-o filmando. Nunca foi de falar muito. Sempre foi o observador que se reservava ao silêncio. Quando falava, era ordenando: "ação!". Daí começava o seu discurso, o verdadeiro discurso, a palavra traduzida em imagem.

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