Matheus Oliveira
Morreu Godard

Godard morreu hoje. Tristeza para todos os cinéfilos do mundo. Tristeza para mim, um deles.
Comecei Godard com Une Femme est Une Femme. De cara estranhei o sujeito, estranhei seu cinema. Nada ali parecia "narrativo", "linear". Era caótico, desobediente, mas era acima de tudo cinema, e dos mais puros. Que merda acontecia? Eu estava sendo contaminado pela cinefilia através de Jean-Luc Godard.
Se Godard não foi minha primeira aventura cinefílica, foi certamente a mais ousada. Lembro-me do dia. Sim, lembro-me bem. Era um sábado, um sábado tedioso e frio, desses que nos prende em casa. Eu folheava um livro enciclopédico sobre a história do Cinema. Procurava clássicos para assistir - era a época na qual nascia o meu repertório (na semana seguinte eu assistiria ao La Dolce Vita, do Fellini). Lembrei que no meu notebook tinha um Godard baixado. Era o Une Femme... Baixei as legendas. Dei play para assistir. Assisti pelo notebook.
Quando o filme começou, já os créditos se mostraram esquisitos. Umas musiquinhas, uns barulhos. Palavras como que jogadas ao acaso. Cores da França. Três nomes creditados (Karina, Brialy, Belmondo) pipocando na tela num ritmo cadenciado que casava perfeitamente com o ritmo de uma voz feminina gritando "light, camera, action!" Começa de fato o filme. Toca uma apaixonante música francesa. A música se casa com a elegância de Anna Karina, que surge no vidro de uma lanchonete antes de adentrá-la. Adentra-a. Pede um café com creme. Os homens reparam nela de cima a baixo. Depois disso é que começa a magia, o inusitado, o que me deixou gamado no Godard. Isso: a música francesa apaixonante continua tocando quando Anna Karina adentra a lanchonete; num dado momento, porém, ainda com Karina dentro do recinto, a música para (não me lembro se tinha um jukebox ali perto para fazer uma brincadeirinha). Ela sai da lanchonete. Atravessa a rua. Depois passa numa banca. De súbito, isso: retorna a música francesa apaixonante. Que houve? Eu pensara à época que talvez fosse problema no som do meu notebook. Ou então no arquivo. Eis a reviravolta: era do filme mesmo. Que era isso? De onde veio essa ideia de ser inesperado até nesse gesto? Eu estranhei aquilo. Só que estranhei de outro modo - positivamente. Aquilo ressoava na minha cabeça. Nunca havia visto nada como aquilo. Geralmente assistia a um filme, e tudo ocorria normalmente. O filme rolava, a música rolava. Tudo direitinho, sincronizado. Com Godard, não. Com ele, tudo mudou. Tudo muda. O filme rola, a música para. Godard então falou-me ao pé do ouvido: Matheus, é a um filme que você assiste, e com ele se pode fazer de tudo; Cinema é a arte desses tempos, não a Literatura ou a Música, mas o Cinema, e eu sou o cineasta dos cineastas.
Godard fez muitos filmes. Sua carreira compreende mais de seis décadas. Começou como crítico, como "jovem turco". Tornou-se nos anos 60 cineasta. Estreou com Acossado, eternizando no imaginário cinéfilo o casal Seberg-Belmondo. Depois veio Weekend, Demônio das Onze Horas, O Desprezo, Viver a Vida, e tantos outros. Godard provocou um rebuliço na sétima arte e no mundo das ideias. Eterno apaixonado, combativo, engajado, contraditório. Foi artista pleno. Também foi um filósofo, filósofo da imagem. Seu História(s) do(s) Cinema(s), talvez sua obra-prima, é exemplo disso. Vê-lo morrer trouxe-me sensação esquisita, a sensação de que os mestres estão morrendo, de que o século XX está se esvaindo.
No mais, concluo minhas palavras dando lugar às do próprio Godard, modificando nelas só o tempo verbal: "Entrei na caverna de Platão iluminado pela luz de Cézzane".
Vá em paz, mestre!