Matheus Oliveira
Não há banda em 'Mulholland Drive'
Atualizado: 17 de fev. de 2022

Mulholland Drive, filme de 2001, é um noir lynchiano.
O enredo justifica a primeira parte da alcunha: uma aspirante à atriz, Diane Selwyn, apaixona-se por Camila Rhodes, beldade pura, esta sim verdadeira atriz. Camila "apadrinha" Diane na indústria. Consegue para ela uma ponta num filme. Pronto. Tudo fica bem - por enquanto: as coisas depois pioram. Surge um diretor renomado, galante e charmoso, Adam Kesher, diretor do filme no qual Diane conseguira uma ponta, filme este no qual Camila é a protagonista. Diane, aos poucos ficando de escanteio, descobre nascente uma paixão entre Camila e Adam. Promete para si que não deixará isso barato. Começa-se então um "fatal" triângulo amoroso.
Também justifica a segunda parte da alcunha o estilo no qual é envolto e trabalhado o enredo propriamente noir: Lynch trabalha-o a partir da lógica dos sonhos, à maneira surrealista, fazendo associações simbólicas entre o consciente e o subconsciente.
O filme se inicia esquisito. Na tela, rosada e salpicada de gente dançando uma dança com música estranha e dissonante, nota-se um clima incômodo, irrealista, deveras exagerado para tratar-se de algo normal, real. Deduz-se, mas com certa reserva: é um sonho? O que se segue após o "baile surreal" é pleno contraste ao lúdico, é brutalidade, realidade cinzenta: alguém roncando, num sono profundo... Um travesseiro se mexe para certificar o espectador de que de fato alguém dorme, isto é, de que alguém sonha. É Diane Selwyn, a própria, a real, que cochila um sôfrego cochilo. Tem um sono profundo antes de ter o seu outro "sono profundo".
Depois, a suntuosidade melancólica da trilha de Angelo Badalamenti nos apresenta à soturna e sinuosa subida da Mulholland Dr. - subida esta que é como a subida simbólica de um nobody ambicioso ao status de estrela hollywoodiana. Sobe, pela Mulholland Dr., de carona numa limusine, a brunette Diane Selwyn, isto é, a falsa, a que é "projetada". O chofer para a limusine no meio do nada. Diane estranha a parada súbita ("What are you doing? We don't stop here"). O chofer, apontando a ela uma arma, pede-lhe que saia do veículo. Ela decide sair. Será morta pelo chofer. Vai saindo do veículo. Em paralelo à sua saída ouvimos de certa distância a algazarra de uns arruaceiros na contramão que vêm com conversíveis a toda velocidade em direção à limusine, prestes a se atracarem com ela. E se atracam. Ocorre então um acidente. Viva dele sai Diane, mas avariada: contrai amnésia. Daí em diante, saindo cambaleante do carro, desce a pé a colina pela qual subiu de limunise, rumo à "cidade dos sonhos".
Aliás, vindo bem a calhar, o título em português sintetiza toda a ideia do filme: é literalmente uma "cidade dos sonhos". Ou, como se diz no Clube Silêncio, "no hay banda, it's all a tape record". É tudo uma ilusão...
O título também é metafórico: crítica à indústria hollywoodiana e ao american way of life. E o filme, sem o "lynchianismo", ou seja, cru, seria pura e simplesmente sobre uma pobre desgraçada, Diane, inócua poeira cósmica na meca do cinema. A ascensão nessa indústria predadora é para poucos. Aproveitadores se dão bem. Mandachuvas, dizendo "esta é a garota", também se dão bem. A ingênua atriz, com uma tia no Canadá com os pés na indústria, achando que isto basta como contato, malogra. A sociedade hollywoodiana é uma sociedade de vedetes reluzentes e de produtores inescrupulosos, todos seguros de si porque imodificáveis em seus pedestais: é uma casta. Ascensões meritórias inexistem. Facilitações, sim. Diane é uma vítima neste microcosmo com ares de tragédia grega, em que tudo já está posto, imodificável por talvez "figuras divinas".
A tragédia lynchiana, possuidora de tais ares, não pode ser contada de modo tradicional. A realidade é um absurdo, e só pode ser trabalhada através da lógica dos sonhos: pois são neles em que com mais profundidade absorvemos a realidade. Ela é distorcida por nossa mente. Afigura-se a nós como um quadro de Salvador Dalí: tudo "escorregadio", genuíno até uma ou duas olhadelas. A cena que dita o tom ao filme descreve com exatidão clínica a sensação do sonho: a do homem que tem medo da figura grotesca residindo nos fundos do restaurante. Dita o tom porque avisa-nos que nada do que veremos adiante se tratará de algo normal. Quase tudo terá de ser levado a sério, obviamente, para que se possa desvendar o puzzle; e ao mesmo nem tudo precisa ser levado a sério, já que vários elementos são irrelevantes para desvendá-lo - muitos deles são meras associações banais que Diane num dado momento reparou e que mais tarde, no sonho, os transformou inconscientemente em símbolos (o personagem de Angelo Badalamenti, o cowboy, etc).
A Diane real, desperta, só a vemos num pedaço final do filme, desleixada e desolada, total oposto à barbie de antes. O sonho, que é o filme quase inteiro, é ela rememorando momentos pregressos (ecoando os flashbacks dos filmes noir), mais especificamente rememorando a decisão lamentável que tomou: a de mandar matar a sua ex-namorada. Por isso o filme é tão terrível, tão soturno: começa na camada mais espessa da ilusão que maquia a desgraça ainda latente e se encerra desabando qualquer alegria ilusória ainda reinante. Segue a rigor a lógica dos sonhos: o melhor momento do sonho é por algum motivo interrompido (exemplo: a ida de Diane Selwyn ao estúdio no qual Adam Kesher grava o seu filme e a sua subsequente e brusca saída do estúdio para se encontrar com Camila Rhodes). O primeiro choque, no qual aos poucos começa a desabar o muro do sonho, parece ser este: em que Camila Rhodes usa uma peruca loira, imitando Diane, ou melhor, aglutinando-se a ela, à sua personalidade, porque é uma ideia criada por Diane - a materialização disto é o sexo que fazem a seguir. A epifania: o Clube Silêncio. A voz de Rebekah Del Rio: o grito desesperado vindo das profundezas da alma de Diane. Llorando por tu amor! Mata a namorada que amava (namorada esta que pode também ser a representação de sua ambição para elevar-se à estrela à la Rita Hayworth na indústria hollywoodiana), estraga a própria vida. Não consegue lidar com o fato consumado: enfia uma arma na boca e se mata. Silêncio...
Sobre o autor:

Matheus P. Oliveira, 6 de Agosto de 1998, co-fundador e editor do Fala Objetiva. Amante de Cinema e leitor assíduo. Sonha ingenuamente em conhecer por completo o rico universo que o Cinema possui. Tem como inspiração para seus escritos o legado de grandes pensadores desta área e de outras. De forma árdua, tenta unificar todas as outras artes em sua mais que amada arte: o Cinema. Quanto ao futuro - não muito distante -, ele pretende dirigir e escrever alguns filmes.