Matheus Oliveira
O Anjo Embriagado (1948)

Na superfície, ressoa a crise identitária do Japão pós-guerra (o filme é de 1948). No fundo, o drama interno de um homem em crise.
A crítica social se escancara logo de início: como o lago enlodado no qual se pode pegar tifoide, tudo ao redor é podre e contaminado. A figura de Sanada, o doutor envelhecido (Takashi Shimura, de Ikiru), seria a voz neutra do filme, que "de fora" tudo denuncia e escancara. A sua voz neutra reflete também uma voz amargurada: explica a sua trajetória pessoal, ligada a uma frustração no campo profissional. Daí sua dureza quando trata seus pacientes, que não são meros pacientes, antes seres humanos que precisam ser amparados. Um deles é um integrante da yakuza, o bonitão Matsunaga (Toshiro Mifune). Por fora, Matsunaga tem um jeitão duro. Por dentro, se mostra humaníssimo. Mas esse contraste tem uma explicação: ele é um sujeito amedrontado; amedrontado porque descobre estar doente - é a tuberculose. Essa convalescência é importante para o filme, é citada sempre - mas até certo momento. Depois, ela não mais importa - ou importa, mas noutro sentido. A convalescência torna-se aos poucos o objeto principal de algo em construção: a metáfora.
Como podemos ver, é a partir de um macrocosmo que o filme se inicia: a decadente sociedade japonesa do pós-guerra. Ocorre em seguida um mergulho profundo. O filme então passa a percorrer o microcosmo: este é o de Matsunaga, o personagem principal do filme, pois é a ele que tudo se resume. A mensagem geral parece ser esta: "não se pode lutar contra si próprio, isto é, contra o seu verdadeiro eu". Assim como a podridão circunda tudo ao redor daquele lago enlodado e este próprio, também aquele aforismo circunda Matsunaga e o que o cerca. Nesse sentido, O Anjo Embriagado é puramente metafórico - vive aliás em função da metáfora. Os embates entre Matsunaga e seu médico resumem todo o filme: essa luta mítica entre o duplo. Além de resumir, os embates iniciais antecipam o embate final, que é a conclusão do círculo que o compasso da história desenha. O embate diz o que tão languidamente se insinua durante o filme inteiro: que naquela batalha antagônica existe apenas a derrota. A partir daí o tom da metáfora dá finalmente as caras, sem apenas se insinuar. O pessimismo que lhe é inerente aglutina a crise identitária da sociedade à crise de Matsunaga, pobre sujeito que tem uma morte lamentável.
O filme, em seu desfecho, sofre um deslize. O doutor, a voz neutra que no fim retorna, profere suas palavras melodramáticas que expõem mais do que devem a mensagem geral. Deixa o filme com ar indulgente. O artifício da menina do bombom é uma intenção de suavizar as coisas, por isso ela reaparece no final; e tendo em vista tudo o que ocorre ao longo do filme, essa menina, que brota sutilmente lá pelo meio da projeção, figura como um artifício que acovarda o rumo do filme: este não se entrega ao total pesar, fica só no agridoce.
NOME ORIGINAL: YOIDORE TENSHI. DIRETOR: AKIRA KUROSAWA. ROTEIRISTA: AKIRA KUROSAWA, KEINOSUKE UEKUSA. PAÍS: JAPÃO. DURAÇÃO: 98 MINUTOS. ELENCO: TAKASHI SHIMURA, TOSHIRO MIFUNE, REIZABURO YAMAMOTO, MICHIYO KOGURE, CHIEKO NAKAKITA, NORIKO SENGOKU, EITARO SHINDO, MASAO SHIMIZU, TAIJI TONOYAMA, YOSHIKO KUGA.
Sobre o autor:

Matheus P. Oliveira, 6 de Agosto de 1998, co-fundador e editor do Fala Objetiva. Amante de Cinema e leitor assíduo. Sonha ingenuamente em conhecer por completo o rico universo que o Cinema possui. Tem como inspiração para seus escritos o legado de grandes pensadores desta área e de outras. De forma árdua, tenta unificar todas as outras artes em sua mais que amada arte: o Cinema. Quanto ao futuro - não muito distante -, ele pretende dirigir e escrever alguns filmes.