Matheus Oliveira
O duplo artístico em "Tiros na Broadway"
Atualizado: 28 de mai. de 2021

Nova York. Anos 20. Ruas reluzentes, teatros e clubes de jazz. O dramaturgo David Shayne acaba de escrever uma peça que promete ser um sucesso e pede que seu amigo e produtor Julian Marx o ajude a tirá-la do papel. Só que os problemas com a indústria logo surgem para lhe arrancar o sonho de ser um Eugene O'Neill. Shayne implora ao amigo, declarando que a arte deve "transformar a alma humana" e não servir como mero entretenimento. Mas Marx, ainda assim, o confronta com a frase definidora: "A vida real não é assim". Corta então para outra cena, que complementa o sentido da frase, na qual vários mafiosos quitam seus "débitos" e falam de lombos e costela - e esta é a vida real, a da máfia italiana, contrapondo aquela vida artística nova iorquina; contrapõe ainda mais quando David Shayne é obrigado a colocar a namorada do chefão da máfia em sua peça, Olive Neal, sob os cuidados do curioso guarda-costa Cheech.
É interessante como Woody Allen se serve desta atmosfera para forrar sua narrativa em algo convincente, pois com isto pretende nos mostrar algo mais profundo enquanto frisa o panorama geral de sua narrativa em nosso imaginário, para, então, debochar de tudo o que estabeleceu, isto é, a conversa intelectual que ora preza, ora despreza. Aliás, talvez seja esta ideia que Woody Allen quis trabalhar - não tenho certeza. Mas contra a dúvida estão as pistas: realizando a transição genial da introdução, consegue contrastar os contextos e conceitos que virão, cujo pano de fundo é a reluzente Nova York - só que esta mesma Nova York, que cheira a vinho, cheira também a esgoto. Eu explico isso. A princípio, todo o design de produção e toda a direção de arte têm como função estabelecer o contexto deste "duplo visual" que reinara na antiga NY (da excentricidade da Era do Jazz aos bastidores da sangrenta rotina da máfia ítalo-americana); mais à frente, porém, este duplo se desenvolve na forma de conceito, ao estabelecer a questão da ambivalência na qual reina a mente artística, explicitada pelo que Shayne e Cheech têm em comum: são eles, na esfera da abstração e da metáfora, a mesma pessoa. Shayne é cerebral, intelectualóide demais e possui a pomposidade do escritor que muito tem a dizer mas que não tem a vivência necessária nem a propriedade para dizê-lo. Já Cheech é o oposto: é a vida vivida, com as respostas para tudo, porque é possuidor da sabedoria popular e da vivência direta e sensorial das coisas. Ambos representam distintos estilos de vida, ainda que compartilhem o mesmo céu nova iorquino - mas certo dia, compartilham o mesmo recinto. Cheech passa a frequentar os ensaios de Olive, mas David detesta a ideia e passa a desprezá-lo. O que parecia se tornar um embate simples, beirando ao choque físico, vira uma briga interna do dramaturgo: a falta de paciência de Cheech, seu jeito truculento de resolver as coisas, é o solilóquio de um homem cansado de suas ideias pomposas, artificiais, que se passam por arte de qualidade. "As pessoas não falam assim", reclama Cheech. E aqui entra Helen Sinclair, a estrela que todos adoram, e assim como Norma Desmond de CREPÚSCULO DOS DEUSES, sonha em ter um novo momento de glória. Ela tem a chance de revivê-lo ao trabalhar com David. Aqui, ela representa o diabinho que sopra no ouvido do escritor o que ele quer ouvir (Helen diz-lhe que é O'Neill, então ele acredita). De uma maneira oposta, mas seguindo a mesma ideia, Olive serve também como um diabinho para Cheech, quando lhe xinga de todos os nomes possíveis (ela é a verdade nua e crua, pois denuncia o pedantismo). Algo ali dentro de David Shayne/Cheech grita altíssimo, e algo nele rapidamente explodirá (e a execução de Olive no final realiza esta ideia). A máfia compreende o feito de Cheech como traição. Resolvem se vingar. No dia em que a peça de Shayne estreia, Cheech decide visitá-lo e parabenizá-lo. Mas neste mesmo dia, os capangas do chefão o procuram e então o matam; segundos antes de morrer, Cheech sussurra no ouvido do dramaturgo um final deslumbrante para a peça - e Shayne obedece ao "pedido".
Curioso como a morte de Cheech coincide com a realização da peça. Meio que significa a purgação artística em sua conclusão. E o escritor, após este período de "sentar para escrever e sangrar", fica livre para ser um homem normal novamente. Daí o retorno de David Shayne ao mundo, correndo atrás de sua namorada que estava de caso com um escritor hermético. Isto ocorre bem no fim do filme. Ainda que seja um final desproporcional, discutindo temas desproporcionais (como Amor, Sexo, Economia) que a premissa jogara para segundo plano e que serviriam apenas como contorno à narrativa principal, o filme se conclui ambíguo, pois, enquanto discorre sobre o drama do escritor e traz um happy end para a história de David dizendo-nos "sim, é possível se apaixonar pelo homem e pelo artista", debocha de todo esse intelectualismo cerebral que percorre, às vezes, num homem como David Shayne para celebrar a vida simples e cotidiana. De novo, uma conclusão ambígua, porque Woody Allen é um homem ambíguo e parece sempre retratar a si mesmo em suas histórias, inclusive em TIROS NA BROADWAY. No entanto, são meras caricaturas que rodeiam este filme, e por isso não é necessário que se leve tão a sério a personalidade de David Shayne nem a de Cheech, pois os dois completam o duplo do artista, talvez do próprio Woody. Os mafiosos com seus ternos invejosos e suas conversas de negócios, o papo artístico nas mesas de clubes regados a vinhos e cigarros e a própria Nova York daquele tempo é uma projeção idealizada do "novo O'Neill", ou melhor, do Woody Allen, e trabalham em prol de sua inspiração para produzir arte. No final ele vira um homem comum porque o artista, antes de tudo, é homem. Só diz que se livrará daquilo tudo porque se livrou da purgação de produzir.
NOME ORIGINAL: Bullets Over Broadway. DIREÇÃO/ROTEIRO: Woody Allen. ELENCO: John Cusack, Dianne Wiest, Jennifer Tilly, Chazz Palminteri, Mary-Louise Parker, Jack Warden, Rob Reiner, Tracey Ullman, Joe Viterelli, Jim Broadbent, Edie Falco, Debi Mazar, Stacey Nelkin, Malgorzata Zajaczkowska, Charles Cragin, Nina von Arx, Brian McConnachie, Tony Sirico, Victor Colicchio, Louis Eppolito, Gene Canfield, Peter Castellotti, John Ventimiglia, John Di Benedetto, Lisa Arturo, Meghan Strange, Carol Lee Meadows, Leigh Torlage e Debra Wiseman. DURAÇÃO: 98 min.