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  • Foto do escritorMatheus Oliveira

Um niilista chamado Woody Allen

Atualizado: há 6 dias




 

Woody Allen lançará neste mês (Setembro) seu 51° filme, Coup de Chance, possivelmente o seu último, e eu percebi que nunca escrevi sobre um dos meus cineastas favoritos. O que se pode falar de sua obra de modo geral: que é divertida? inspiradora? romântica? profunda? Incontáveis são os adjetivos. Também os insultos: há quem diga que o neurótico diretor perdeu a mão, que não faz mais a enxurrada de obras-primas que fez nos anos 70 e 80.


WA, para uns, tornou-se genérico, escritor de historietas medíocres, banais, recheadas de questões vazias travestidas por filosofia de primeira. Para eles, talvez suas últimas grandes obras tenham ficado em 2006, com Match Point, o seu "Crime e Castigo", e em 2007, com Cassandra's Dream, espécie de prima pobre da antecessora.


Já para outros, isto é, para os seus defensores - e nesta categoria eu me incluo -, WA nunca, ou quase nunca, perdeu a mão; apenas, certas obras suas se afiguram menos inspiradas do que outras, com assuntos que cá e lá se repetem (se bem que isso acontece com quase todo artista - o mesmo se aplica às repetições). Os filmes de WA, quando não falam sempre do mesmo assunto - e o assunto recorrente é vasto: a Vida -, pelo menos conservam certo "clima" em comum, certa substância agradável que nos faz sentir como se estivéssemos no sofá de casa. E é assim com todos os seus filmes - todos mesmo.


Li esses dias um texto interessante. O texto falava sobre o fato de alguns artistas, em suas obras, soarem repetitivos. Não me recordo do título, nem de sua autoria, mas uma analogia presente em sua conclusão chamou-me a atenção: pensemos no artista como um confeiteiro; o artista, a cada obra realizada, quer fazer o bolo perfeito, só que o bolo perfeito - inalcançável - sempre fica para a próxima vez, e das tentativas de fazê-lo, embora nunca saia o bolo perfeito, saem pelo menos bolos deliciosos, um melhor do que o outro. Que isso significa? Que a cada obra se tenta falar de algo específico, grandiosamente específico, com a vagueza no entanto sempre vencendo; da tentativa, fica para a próxima vez um gostinho de "quero mais", uma expectativa de que aquela coisa específica seja enfim manifestada - e por aí vai... É assim, por exemplo, com Hong Sang-soo (cineasta sul-coreano) e com Eric Rohmer (francês), artistas, digamos, "repetitivos". E embora eu veja WA entre estes dois, WA é - bem, bem... - menos intelectual e rigoroso. É que não há nele, como há naqueles dois, o que se pode chamar "método". Não há um tratamento estético meticulosamente pensado. "Sempre fui preguiçoso", disse certa vez o próprio Woody. Inexiste um estilo "alleniano" de se fazer cinema no mesmo sentido em que se fala de um estilo rohmeriano. Falar num cinema alleniano, numa estética alleniana, seria perda de tempo.


O que há então de especial em seu Cinema? É disso que falarei no decorrer do texto.

 

Antes de continuar, preciso me desculpar: não fui totalmente sincero. Os últimos filmes de WA - especialmente A Rainny Day in New York - são horríveis. Não são pouco inspirados; são vazios de inspiração. Woody insiste numa tese sobre sei lá o quê, num assunto, mas mira e erra. É tudo muito genérico. Muito engessado. É urgente que ele pare de fazer filmes, ou então que faça um que preste. É complicado entender o que acontece - de verdade. O homem perdeu a mão. Escreve como um psicopata, mas perdeu a mão. Que houve? Existe explicação? Não reside nas suas dificuldades em achar gente para o elenco ou qualquer outro contratempo, afinal, o problema reside noutro ponto, na raiz: o homem está murchando, murchando em termos artísticos. E não poderia ser noutro setor, uma vez que as dificuldades de ordem prática estimulam o artista em vez de limitá-lo. Mas continuemos a investigar o problema. De novo: o homem tem murchado. Seus filmes têm se tornado inócuos. Será que WA se prepara para o silêncio absoluto, como Nietzsche? Acho que não. Ele ainda quer falar. Só não o faz com o mesmo gás de seus anos dourados. Enfim, é tudo um mistério.


Aliás, por que estes mesmos filmes inócuos têm se mantido agradáveis de serem assistidos? Ou melhor: por que estes filmes, não precisando de revisita, pois são horríveis - e é torturante a revisita -, se mantiveram mesmo assim em nossa memória como obras agradáveis? Eu sei, seus filmes são aquilo a que chamamos comfort movies. Ainda assim, acredito que a resposta, tal como tudo no Universo, é mais complexa do que isso. Seus filmes continuam sendo assistidos não só porque são comfort movies. Continuam queridos para nós, espectadores, porque conservam algo de único, de sensível, que reside entre a forma e o conteúdo - e aquela coisa única é obra do mero acaso, de "acidentes" que ocorrem em todos seus filmes.


Woody Allen, num podcast, disse que está onde está por pura sorte. Só sabe fazer o que faz. Disse que se não tivesse se tornado cineasta, estaria até hoje fazendo qualquer coisa, entregando cartas ou trabalhando como floricultor. Ele atribui à sua longeva carreira consequência da sorte. Mas há método nesta sequência de acasos? Talvez.


(Antes, uma breve digressão que dará sentido ao corpo do texto e, em seguida, uma acelerada em seu ritmo).


O ato de fabular é dos mais antigos da humanidade. Sempre o homem nutriu o impulso pela fábula. Os humanos antigos, ao redor de suas fogueiras, contavam entre si histórias, talvez fabulassem até caírem no sono. Isso era o que tinha. E é o que ainda tem. Não é preciso ir muito longe. Todos têm histórias para contar. Histórias tristes, histórias felizes. Todos querem fabular, todos o fazem. Seja na fila do supermercado, na fila do banco. Não há ninguém que não tenha uma história na ponta da língua para contar. É a história de alguém próximo, a de alguém de quem só ouvimos falar, ou a de pessoas que talvez nunca tenham existido. Contamos, às vezes, histórias sobre nós mesmos. Cineastas têm secado a boca de seus atores ao fazê-los matraquear. Rohmer e Sang-soo, anteriormente citados, o fizeram (este último ainda o faz). Mas era algo diferente. Existe neles algo estritamente calculado. Sim, do prosaismo da conversa, isto é, do aspecto singelo do "matraquear", criam-se pequenos núcleos narrativos que levam a narrativa a um determinado lugar, como se a própria massa daquele falatório fosse a forma e conteúdo unificados, fazendo com que os filmes trilhem um caminho sem ter necessariamente uma "grande trama". Mas não me prolongarei nessa explicação, pois é deveras complexo tal assunto. Aliás, citei os dois cineastas novamente apenas para traçar de definitivo o abismo que os difere de Woody Allen, embora na superfície eles façam parte do mesmo clubinho. Enfim, sigamos ao tal método alleniano - ou "não-método".


Para compreendemos a obra de Woody Allen, este bergmaniano de carteirinha, é preciso primeiramente tomarmos consciência de certo estado de espírito que o acompanhou por toda a carreira, e este mesmo estado de espírito forjou de forma espontânea, ou acidental, um sutil método que - de novo - não é bem método, antes algo volátil e ao mesmo tempo controlado, algo que põe a obra de WA entre o controle e a pura contingência.


Que os personagens dos filmes de WA parecem ser seu alter ego é o de menos. Isso é um lugar-comum nas discussões sobre Arte: essa coisa de ficar traçando paralelismos entre a arte e seu artista. É que no fim das contas toda obra acabada quase sempre vira um corpo estranho descolado de seu criador, de modo que a obra, curiosamente, torna-se algo comum mais para o seu apreciador do que para o seu próprio artífice. Resumindo: é perda de tempo prender-se a esse tópico.


Avancemos. WA é um pessimista, um niilista. Sua obra é coesa com sua visão de mundo. Woody era um rapaz bobinho mas empolgado, fanático por jazz, HQs e cinema. Começou a ler literatura séria para impressionar as namoradinhas. Inicialmente servindo como artifício de paquera, a Literatura tornou-se ferramenta catártica. Suas paixões iniciais o acompanharam em sua jornada autodidata na literatura de “gente grande”, e o neurótico cineasta, temeroso que o Universo explodisse de tanto que se expandia¹, e que logo após sua expulsão da faculdade viraria comediante, acabou tendo como pais espirituais Freud, Nietzsche e Dostoievski. Quer dizer, ele também ama de paixão Bob Hope e os irmãos Marx, talvez os pais espirituais do seu lado cômico, mas ainda assim parece que o que mais ressoa em sua obra é o pessimismo, a visão amarga de que a vida não tem sentido. Vendo por esse prisma, seus filmes mais sérios (Interiors, Crimes and Misdemeanors, Husband and Wives) parecem ser mais condizentes com sua visão de mundo do que os cômicos, embora estes tenham também sua acidez aqui e acolá (vide Love and Death). Os assuntos, o falatório que os explanam, são o verdadeiro conteúdo de Woody: é a sua voz, através de diferentes personagens e situações, gritando em alto e bom som o absurdo do Universo.


Mas isto ainda é a superfície do que quero tocar. Ainda não disse o que queria dizer. E isto representa também o drama do artista, representa o drama de Woody Allen. De volta ao assunto da repetição: a repetição de WA é inconsciente. Isso quer dizer que ele não faz nada disso deliberadamente, ou seja, não há um método. Mas e se sob outro prisma houver um? Explico. WA ama escrever. Certa vez ele dissera que nunca teve um bloqueio criativo, pois sempre sabia o que escrever. Bloqueio só tinha quando ia filmar - já isto são outros quinhentos. Ele sempre tinha uma ideia. Sempre uma imaginação do que seria certa vida ideal. Mas ele escrevia só sobre o que conhecia. E, ao que parece, conhecia bastante coisa. Nem parece que a sua formação intelectual foi a de um diletante meio desleixado. Sim, lera um bocado de obras. Tomou para si as indagações dos grandes pensadores da humanidade e criou um cinema próprio: um cinema pessoal e popular, relevante e inócuo, pedante e profundo. Apenas, lamenta que durante toda a sua formação, se leu um mundo de livros, deixou de lado outro mundo. Lamentava-se das lacunas². Nunca lera Ulisses, Dom Quixote, nada de Virginia Woolf, nada de D. H. Lawrence. Nem Dickens nem Brontë. Por outro lado, amava Hemingway e Camus. Adorava Melville e a poesia de Emily Dickinson. Embora tenha achado Fitzgerald mais ou menos, amou Thomas Mann e Turguêniev. Com a sua verve sempre cômica, ainda acrescenta a seguinte informação: que é talvez um dos poucos que lera o romance de Goebbels, Michael. Eis uma passagem definidora de WA em sua autobiografia Apropos of Nothing: "Até hoje, os poetas da Tin Pan Alley são os meus poetas, e nada em A Terra Inútil, Pound ou Auden me toca tanto quanto Cole Porter com 'você não é digno de aspargos fora da temporada'".


Mas, afinal, o que se tira desse diagnóstico? Isto: que WA nunca foi um leitor enciclopédico. Leu pouco, mas leu os essenciais. É uma das máximas de Nelson Rodrigues: a de que se deve ler pouco, mas reler muito, pois o que importa mesmo é manter-se, segundo o dramaturgo, "em poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem, e que é preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia". WA não mergulhou em tudo, mas entendeu tudo. Assistir a seus filmes é assistir a um corpo de obra maduro, que não se leva a sério porque no fim das contas nada disso importa, nada disso é sério. Talvez o mar de inspiração que surja em WA, mar que não se esgota, venha de sua insatisfação com a vida. Sim, é um clichê, mas é verdade. Há sempre uma história para contar. E ele sente que precisa fazê-lo. Afinal, o Universo está se expandindo e um dia explodirá. WA precisa escrever, precisa dirigir, precisa contar as histórias que conta, mesmo quando são pavorosas. A arte, no fim das contas, pertencente a um mundo sem sentido, criada por uma civilização que veio de um lugar obscuro e que irá para um lugar também obscuro, é por excelência inútil. A arte é inútil porque discute algo que não se sabe o que é. Aliás, nem mesmo as perguntas que a arte faz - e fez - resistirão à entropia. E tudo um dia, querendo ou não, sumirá. Portanto, importa se um filme seu é espetacular e outro, pavoroso? O que importa se Rohmer e Sang-soo são mais intelectuais e rigorosos? Algo vai prevalecer diante da destruição de tudo? Não. WA, nesse sentido, sai ganhando, pois não está nem aí. Seus filmes são uma parcela de sonho em meio ao absurdo (vide Purple Rose of Cairo e Midnight in Paris).


WA está próximo de Chaplin, no sentido de que pouco se lixa para a forma, pois o que importa mesmo é o conteúdo, as gags por si só. Não à toa prefere Chaplin a Keaton, embora achasse este melhor diretor. E isto já diz tudo. Aliás, quando um diretor pensa pouco na forma e tudo mais, surge sem querer uma forma muito específica e espontânea - e talvez seja esta a situação de WA. O seu método talvez seja o de ter abraçado e, assim, aceitado a contingência: seus personagens são vozes suas presas num mundo sem sentido, mas, embora, sem sentido, tem coisas muito lindas, como o amor, a nostalgia, a infância. WA olhou para o abismo, o abismo o olhou de volta, e WA agora faz troça de tudo, pois viu tudo, toda a escuridão, mas também pode ter visto alguma luz.


Woody Allen é um grande artista, ele só não tem grandes pretensões. Quer dizer, ele até quis tê-las, mas era preguiçoso demais para isso. Levou sua vida como uma canção de jazz: ele deixava se levar pelo swing. Sua vida foi uma sequência de tiros no escuro. Sempre fez os filmes que quis fazer. Sempre escreveu sobre o que queria. Fez filmes de uma profundidade que ele mesmo achou que fosse incapaz de criar: Interiors, o seu "Gritos e Sussurros", já é eterno. Também o são Annie Hall e Manhattan. Ninguém falou tão bem sobre Amor e Morte quando WA. Ninguém representou tão bem certa parcela da sociedade americana. Ninguém louvou e ridicularizou ao mesmo tempo a intelligentsia americana. WA é mais profundo do que aparenta ser. Talvez, por ter envelhecido, sua visão de mundo se simplificou, e a consequência disso é ter começado a fazer filmes que representassem tal como é essa visão de mundo simplificada, mas expandida em profundidade em diálogos corriqueiros. WA não mais precisa dos floreios de outrora. Ele ficou simples. Agigantou-se. Sua obra agigantou-se, de modo que ao vê-la por fora é coisa bobinha, genérica. Eis o seu não-método: conseguir alcançar o maior dos paradoxos. Que paradoxo é este? Ser complexo sendo simples. O cineasta, de tanto fazer filmes, passa a soar genérico e repetitivo, mas isto faz parte de um jeito de ser do cineasta, e se o cineasta um dia foi mais ousado, não significa que perdeu a mão; significa apenas que ficou mais simples, passou a comportar uma carga maior de verdade numa linguagem simples, sintetizadora - ele atingiu um ponto na Arte no qual a verdade, tão próxima de ser resolvida, torna-se prosaica por estar perto de ser desmascarada. Depois disso, a Arte se torna inútil, pois realizou a sua função, que é a de questionar.


Para finalizar este texto, invoco novamente Apropos of Nothing, e cito uma sombria passagem que é a síntese da filosofia de Woody Allen:


"A ilusão de que você está fazendo algo para se ajudar te ajuda. [...] Você se sente um pouco melhor, um pouco menos desanimado. Você agarra sua esperança num Godot³ que nunca vem, mas a ideia de que ele virá com respostas te ajuda a passar pelo pesadelo que te envolve. Como a religião, onde a ilusão faz a pessoa suportar. E, estando nas artes, eu invejo aquelas pessoas que extraem consolo da crença de que o trabalho que elas criaram vai sobreviver e ser muito discutido e [...] será como os católicos com sua vida pós-morte, o "legado" do artista o tornará imortal. A sacada aqui é que todas as pessoas que discutem sobre esse legado e quão grande é a obra do artista estão vivas e estão pedindo pastrami, enquanto o artista está em alguma urna funerária ou debaixo da terra no Queens. Todas as pessoas sobre o túmulo de Shakespeare cantando seus louvores significavam um grande nada para o Bardo, e um dia virá - um dia bem distante, mas esteja certo de que definitivamente virá - quando todas as peças de Shakespeare, por mais que tenham tramas brilhantes e pentâmetros iâmbicos pedantes, e todos os pontos de Seurat irão sumir junto a cada átomo do universo. [...] O universo vai desaparecer e não haverá lugar para pendurar seu chapéu, afinal, somos um acidente da física. E um acidente bem desajeitado. Não o produto de uma criação inteligente, mas no máximo a obra de um incompetente crasso".

 

Notas:


  1. Referência à fala do então pequeno Alvy Singer, em Annie Hall.

  2. Para saber na íntregra o que fala Woody Allen, basta ler sua autobiografia Apropos of Nothing.

  3. Referência a Godot de Esperando Godot, peça de Samuel Beckett.










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